Por Joaquim de Lira Neto - da página "A Miséria da Democracia"
O biólogo Átila Iamarino ficou muito conhecido neste período de pandemia por realizar análises fundamentadas em pesquisas científicas, o que fez com que recebesse críticas de pessoas de extrema-direita. Entretanto, no vídeo “O livre mercado é um computador”, Átila foge ao seu habitual rigor, estabelecendo um paralelo entre relações sociais, computadores e formigueiros, de forma a “naturalizar” o capitalismo de livre mercado.
O maior problema de sua análise consiste em que, no caso do formigueiro, como o virologista descreve, há uma divisão de funções (rainha, operárias, soldados) rígida e inelutável, pois determinada por características biológicas; as formigas são escravas de sua natureza. A comparação entre a divisão de funções num formigueiro e a divisão social do trabalho, entre humanos, é equivocada mesmo para certos teóricos liberais – embora haja, sim, exceções, como Hayek, citado por Átila.
Adam Smith, um dos fundadores do liberalismo econômico, defendia que não há, por natureza, uma distância significativa entre os homens no que se refere ao talento. Pelo contrário, Smith (1979, p. 15) afirma que “a grande disparidade entre os diversos talentos que parecem distinguir os homens das diversas profissões quando chegam à maturidade é normalmente muito menos uma causa do que um efeito da divisão do trabalho”. Ou seja, nesta visão, não é porque os homens são diferentes que o trabalho deve ser dividido, mas é porque o trabalho está dividido que os homens apresentam capacidades significativamente diferentes, sendo parcialmente castrados, impedidos de desenvolver outros talentos que a natureza humana lhes proporciona em potência.
O eminente teórico liberal estava ciente de que a divisão social do trabalho, que significa a separação entre trabalhos predominantemente intelectuais e trabalhos predominantemente corporais-cinestésicos (braçais), mutila os seres humanos. Não obstante, ele não considerava um problema o fato de que uma minoria abastada poderia alcançar grande desenvolvimento intelectual, enquanto a maioria dos trabalhadores encontrava-se presa a tarefas repetitivas, mecânicas, embrutecedoras.
Como Marx já denunciava no século XIX, a Economia Política, tal como formulada por Adam Smith e consortes, “conhece o trabalhador apenas como animal de trabalho, como uma besta reduzida às mais estritas necessidades corporais” (MARX, 2004, p. 31).
Adam Smith sustentava sua defesa da divisão social do trabalho recorrendo a uma suposta “tendência para negociar e trocar uma coisa por outra” (SMITH, 1979, p. 13), que estaria inscrita na natureza humana, sendo comum a todos os homens. Além disso, é importante lembrar também que, para Smith (1979), as trocas não ocorrem pelo bem da coletividade, ou por bondade. Muito pelo contrário, os homens negociam sempre tendo em vista seus interesses mais individualistas. Desta forma, “não é por generosidade que o homem do talho, quem faz a cerveja ou o padeiro nos fornecem os alimentos; fazem-no no seu próprio interesse” (SMITH, 1979, p. 13-14). É por isso que, analisando o pensamento de Smith, Marx conclui que nele “o motivo daquele que troca não é a HUMANIDADE, mas sim o EGOÍSMO” (MARX, 2004, p. 155, grifos meus).
A característica mais importante que distingue o homem dos demais animais é o trabalho, descrito por Marx da seguinte maneira: “O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. (...) Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio. (...) Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, ou seja, um resultado que já existia idealmente” (MARX, p. 255-256).
Ou seja, o homem, ser da natureza, consegue transformar a si próprio, diferente de abelhas ou formigas, que não conseguem transcender os limites de sua natureza. Por mais perfeita que uma colmeia possa parecer, ela foi feita através de uma obediência cega a uma programação biológica.
Átila enxerga tal programação no homem? Ele considera que é “natural” que uma minoria tenha tempo e meios para desenvolver suas potencialidades, enquanto uma maioria tenta apenas sobreviver na divisão social do trabalho capitalista? Uma coisa é certa: as “abelhas rainha” do capitalismo viram com bons olhos a análise precária de Átila Iamarino.
Referências:
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
______. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
SMITH, A. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. In: Os Pensadores. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Imagem: Revista Exame.
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