por Gisele Caresia
Pablo Neruda, uma das mais expressivas vozes da poesia mundial, que empunhou seus versos como uma poderosa arma contra os inimigos do povo, mais de quatro décadas depois de sua morte, em 23 de setembro de 1973, continua brilhando como estrela fulgurante no céu andino, iluminando os caminhos da Humanidade.
Há 46 anos uma luz brilha sobre o ponto mais alto do Chile e, do céu andino, espraia seu brilho intenso iluminando caminhos. Essa luz tem nome de homem apaixonado, de poeta combatente, de compromisso com o povo, de canto de amor à vida. Chama-se Pablo Neruda.
Mais de quatro décadas depois de sua morte, em 23 de setembro de 1973, o chileno que empunhou sua pena como uma bandeira, que fez da poesia uma arma contra os inimigos, de seu canto um libelo de esperança e de confiança no futuro da Humanidade, permanece fulgurando como uma das mais expressivas vozes da poesia mundial do nosso tempo.
Detentor de um dos poderios verbais mais contundentes da língua espanhola, o canto de Neruda foi além de seu país, além da América, além de qualquer fronteira física, de qualquer barreira linguística. Pertence a toda a Humanidade. Pois é dela que Neruda tornou-se porta-voz. É da alma, da luta, dos anseios humanos que capturou o extrato de sua poesia.
"Não me sinto só na noite,/ na escuridão da terra./ Sou povo, povo inumerável./ Tenho em minha voz a força pura/ para atravessar o silêncio/ e germinar nas trevas"
Não por outro motivo, esse mesmo povo soube retribuir, desde sempre, o intenso amor que lhe foi doado pelo poeta. Seu povo, os povos da América e os povos do mundo, recitam seus poemas, musicam seus versos, colecionam seus livros. Uma multidão até hoje migra, de todas os recantos do Planeta, para se enfileirar em visita à casa de Isla Negra, onde Neruda viveu os últimos anos de sua vida, numa contínua procissão de reconhecimento e de agradecimento ao poeta que tanto amor lhe dedicou.
O MENINO NERUDA
Nascido em Parral, no Chile, em pleno inverno - como lembraria depois o poeta em seus versos - Neruda não conheceu a mãe, que faleceu um mês após o seu nascimento, em 1904. Seu pai, um humilde operário ferroviário, batizou o menino de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto.
"Minha infância são sapatos molhados, troncos partidos/ tombados na selva, devorados por cipós/ e escaravelhos, doces dias sobre a aveia,/ e a barba dourada de meu pai saindo/ para a majestade da ferroviária."
O adolescente que presidia o Ateneu Literário do Colégio Tamuco, lançou aos 19 anos seu primeiro livro, "Crepúsculo". A partir de 1920 adotou o pseudônimo de Pablo Neruda, tirado do poeta nacional tcheco Jan Neruda, com o qual se tornaria conhecido como uma das principais vozes da poesia mundial.
Um de seus mais estrondosos sucessos veio à público quando Neruda tinha apenas 20 anos de idade, quando foi publicada uma das obras poéticas mais lidas do século: "Vinte poemas de amor e uma canção desesperada". "Um livro doloroso e pastoril que contém minhas mais atormentadas paixões adolescentes. É um livro que amo porque, apesar de sua aguda melancolia, está presente nele o prazer de viver", definiria décadas mais tarde o próprio Neruda.
"Para meu coração teu peito basta,/ para que sejas livre, minhas asas/ de minha boca chegarás até o céu/ o que era adormecido em tua alma"
Em 1921, com a intenção de dar aulas de francês, Neruda muda-se para Santiago e, alguns anos depois, dá início à sua longa carreira diplomática. Foi cônsul do Chile na Birmânia, no Ceilão e em Cingapura. Representou seu país na Argentina e, depois, em Madri, sem jamais interromper sua produção poética. Durante o período em que viveu na Espanha, Neruda vê eclodir a Guerra Civil Espanhola em 1936 e, pouco tempo depois, é destituído do cargo. É desse período o poema "Explico algumas coisas", um repúdio ao franquismo e uma denúncia vigorosa do fascismo e de seus crimes sanguinários:
"olhai minha casa morta,/ olhai a Espanha rota:/ mas de cada casa morta sai metal ardendo/ em vez de flores,/ mas de cada beco de Espanha/ sai Espanha,/ mas de cada criança morta sai um fuzil com olhos,/ mas de cada crime nascem balas/ que os acharão um dia o lugar/ do coração"
Volta ao Chile, onde atua em defesa dos refugiados espanhóis. Em 1940, é nomeado cônsul do México. Nesse período, a obra e a militância de Neruda se unem numa simbiose cada vez mais profunda e o poeta, empunhando seu versos militantes, declara contra aqueles que apregoam que a forma vazia deve prevalecer sobre o conteúdo: "Toda a criação que não está a serviço da liberdade nesses dias é uma traição".
A partir de então, Neruda intensifica o trabalho que havia começado anos antes, o de fuzilar, com sua pena cada vez mais certeira, os traidores do povo. Deu nome, um a um, aos tiranos, aos vendilhões da Pátria, aos serviçais de Wall Street, à imprensa chauvinista e toda estirpe de invertebrados que povoam a superfície terrestre e que se beneficiam da exploração, da fome e da miséria humana. Trujillo, Somoza, Batista e outros "vendedores açulados pelos lobos de Nova Iorque", estão entre os decapitados pela espada afiada de Neruda, assim como Nixon, Hitler e vermes da mesma laia.
CANTO GERAL
Em 1943, de volta ao Chile, é eleito senador pelo Partido da Unidade Popular. Em 1945, se torna integrante do Partido Comunista do Chile e, em 1948, é perseguido e obrigado a entrar na clandestinidade quando disputava o cargo de senador pelo PC.
"Naquele ano de perigo e clandestinidade terminei meu livro mais importante", conta Neruda, sobre o maior hino de amor já escrito ao Continente Americano, aos seus heróicos libertadores, ao Chile, às belezas da fauna e da flora e, principalmente, aos bravos homens e mulheres que povoam essa região do Planeta. Neruda havia brindado o mundo com o seu "Canto Geral", uma das maiores obras-primas poéticas já produzidas.
"Meu povo, povo meu, ergue teu destino!/ Rompe o cárcere, abre os muros que te encerram!/ Esmaga o passo torvo da ratazana que comanda/ do palácio: ergue tuas lanças à aurora,/ e no mais alto deixa que a tua estrela iracunda/ fulgure, iluminando os caminhos da América".
Neruda agora pertence aos povos de todo o mundo, ergue sua voz em nome daqueles cujas vozes não são ouvidas, faz-se sentinela contra as mazelas que são impostas ao povo, afina sua poesia de combate e dispara com maestria sobre o inimigo e, com a mesma precisão, aponta os caminhos da liberdade.
Para Neruda, a luta do Chile por soberania, pela igualdade e pela dignidade de seus filhos passa a ter a mesma dimensão da luta de todos os povos e países que vivem sobre dominação. Denuncia os grandes monopólios como a Standard Oil que impõe o domínio petrolífero, a Anaconda Copperming Co. que suga o cobre da América do Sul, a United Fruit Co. que estende suas garras sobre a América Central, denúncia o domínio financeiro de Wall Street.
Com o mesmo ímpeto, canta hinos de louvor aos povos que se libertaram das garras da dominação. É assim que escreve "Canção de Gesta", dedicado à Revolução Cubana. Rende glórias aos heróis do povo: Tupac Amaru, Bolívar, Martí, O’Higgins, Lincoln, Sandino, Martí, Zapata, Che, Fidel. Canta a vitória soviética sobre o nazi-fascismo, dedicando poemas à Stalingrado, à União Soviética e a seu líder, Josef Stalin.
"União Soviética, se juntássemos/ todo o sangue derramado em tua luta,/ tudo o que deste como mãe ao mundo/ para que a liberdade agonizante vivesse,/ teríamos um novo oceano,/ grande como nenhum outro,/ profundo como nenhum outro,/ vivente como todos os rios,/ ativo como o fogo dos vulcões araucanos"
Sintoniza sua voz às vozes dos grandes nomes da poesia mundial. Em alguns casos, essa unidade se dá também na vida pessoal, pois, durante suas estada em Madri, se torna amigo de Federico García Lorca, uma das principais expressões da poesia espanhola, assassinado pelos fascistas no começo da guerra civil. Ainda em "Canto Geral", Neruda dedica um de seus memoráveis poemas a um jovem brasileiro que, em época distante, também transformou a pena em espada em defesa da justiça.
"Castro Alves do Brasil, para quem cantaste? (...) / Cantei para aqueles que não tinham voz./ Minha voz bateu em portas até então fechadas/ para que, combatendo, a liberdade entrasse./ Castro Alves do Brasil, hoje que o teu livro puro/ torna a nascer para a terra livre, deixam-me a mim, poeta da nossa América,/ coroar a tua cabeça com os louros do povo"
No início da década de 70, indicado candidato à presidência do Chile, Neruda renúncia em apoio a um querido amigo, o socialista Salvador Allende. Em 73, deixa a embaixada do Chile na França por problemas de saúde. Coleciona, até então, uma vasta coleção de livros iluminados, entre os quais se destacam, além dos já citados, "Ode a Stalingrado", "Terceira Residência", "Odes Elementares" e o autobiográfico "Confesso que vivi".
Combatendo na vida e na poesia, Neruda escreveu seu último livro, na verdade um manifesto, como ele mesmo o define, em 1973. O mais político de seus livros, "Incitação ao Nixonicídio e louvor à Revolução Chilena", uma contundente denúncia da ação do imperialismo - da CIA - no Chile, que levaria ao assassinato de Allende, uma das mais sinistras páginas de horror que a América assistiu no século XX.
"Eu não quero a Pátria dividida,/ nem por sete facadas dessangrada:/ quero a luz do Chile hasteada/ sobre a nova casa construída/ na minha terra todos nós cabemos/ e aqueles que se crêem prisioneiros/ podem partir com sua melodia:/ os ricos sempre foram estrangeiros/ para Miami vão com suas tias!/ Aqui fico a cantar com os operários/ nesta nova história e geografia"
"Não tenho remédio: contra os inimigos de meu povo minha canção é ofensiva e dura como pedra araucana. Esta pode ser uma função efêmera. Cumpro-a porém. E recorro às armas mais antigas da poesia, ao canto e ao panfleto usado por clássicos e românticos e destinados à destruição do inimigo. Agora, firmes, que vou disparar", afirma Neruda na introdução do livro, onde não deixa pedra sobre pedra ao expor as entranhas do envolvimento norte-americano na sabotagem, o papel de Nixon, os interesses dos EUA pelas riquezas chilenas, o papel serviçal da imprensa local e o empenho dessa corja para abortar a soberania do Chile nascida com a posse de Allende. "A história tem provado a capacidade demolidora da poesia e dela faço uso sem nenhuma cerimônia", declara Neruda em "Nixonicídio".
Doze dias após o golpe contra Allende, Neruda morre em Santiago ou, mais precisamente, se transforma em luz no céu de seu amado Chile, de onde se espraia e ilumina com seu generoso legado e exemplo de vida, a Humanidade que tanto amou.
"está meu coração nesta luta./ Meu povo vencerá. Todos os povos/ vencerão, um por um".
Sobre a Autora
Gisele Caresia é jornalista. Foi diretora da UBES,
editora de Geral do HP, assessora de imprensa do
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),
da Assembléia Legislativa e da Prefeitura de São Paulo.
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