Por Leonardo Wexell Severo
Com a nova Constituição assegurada pelo MAS e muita mobilização que levaram à vitória de Arce, bolivianas conquistam 20 das 36 cadeiras do Senado (56%) e 62 das 130 da Câmara Baixa (48%)
Dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) da Bolívia confirmam que as mulheres alcançaram um recorde histórico no Senado, no domingo (18), aproximando-se à igualdade na Câmara dos Deputados.
A política de “paridade e alternância” implementada pelo Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP) coloca o país andino no pódio da representação feminina no parlamento, com 20 das 36 cadeiras do Senado (56%) e 62 das 130 da Câmara Baixa (48%).
“Por trás destes números está a valorização das mulheres e dos povos indígenas, da pollera (saia camponesa) e da whipala (bandeira andina que expressa a alegria e o sonho), do combate à discriminação”, declarou Ruth Londram, da executiva da Associação de Mulheres Indígenas Originárias de Colcapirhua “Bartolina Sisa”.
Na avaliação de Londram, ao valorizarem a imagem da heroína indígena aimará, companheira de Túpac Katari assassinada pelos conquistadores espanhóis, “as Bartolinas apontam o caminho da libertação da Pátria a partir da superação individual e coletiva”. “É a organização enquanto movimento popular que nos permite ir além, pois temos consciência dos nossos direitos e não somos mais tratadas de forma insignificante. Muito diferente foi o período do golpe de Jeanine Áñez, quando retornaram os maus tratos, o preconceito e o racismo”, condenou.
E foi a maior organização e a crescente participação de entidades próprias femininas e dos movimentos sociais que conseguiu elevar o tom e também potencializar a ação político-partidária, com resultados positivos crescentes na luta pela construção de escolas, hospitais e moradias para as famílias que mais necessitavam, frisou Londram.
“É importante destacar que a Lei de Participação Política, que garantiu a paridade e a alternância de mulheres na lista de candidaturas dos partidos, foi uma conquista do MAS, graças à presença feminina proveniente do setor popular na Assembleia Constituinte – entre 2006 e 2007 – aprovada na Constituição Política do Estado Plurinacional de 2009”, afirmou Dolores Arce, ex-diretora-executiva do Centro de Produções Radiofônicas da Bolívia (Cepra).
A própria Constituinte foi presidida por uma líder camponesa de ascendência quéchua, Silvia Lazarte, que morreu em julho deste ano vítima de problemas pulmonares causados por uma doença provocada por uma detenção violenta por tropas do exército quando ainda era jovem. No golpe de 2019 foi contra a então presidente do Senado, Adriana Salvatierra, que a truculência e as ameaças se abateram, obrigando a renúncia pois era a primeira na ordem sucessória. Ambas parlamentares eram do MAS.
Dolores Arce, ex-chefe das Rádios dos Povos Originários (RPOs), vinculadas ao Ministério da Comunicação durante o governo de Evo Morales, ressaltou que “como é lei, é algo obrigatório, é sim ou sim os partidos têm que encaminhar ao Tribunal Eleitoral sua lista paritária e intercalada”. “Por isso até mesmo os partidos de direita contam com as suas representantes. Se tem um titular homem, a suplente será mulher; se a titular é mulher, o suplente será homem”, explicou Dolores.
O MAS venceu as eleições presidenciais com Luis Arce Catacora (Lucho) alcançando mais de 55% dos votos, seguido por Carlos Mesa, do Comunidade Cidadã (CC), com 28%; e Luis Fernando Camacho, do Creemos, com 14%, Na composição do Senado, o MAS conquistou a maioria, com dez mulheres e 11 homens, o CC obteve 11 vagas, das quais sete mulheres; e o Creemos, quatro, paritariamente.
Para Dolores, “depois de uma Jeanine Áñez autoproclamada presidente, os fatos demonstram que ser homem ou mulher não é o relevante, mas a ideologia que trazem consigo, porque as parlamentares eleitas poderiam ser representantes de uma elite conservadora, o que não é o caso”. Conforme a comunicadora, as senadoras e deputadas eleitas do MAS respondem a uma linha política de libertação nacional, de desenvolvimento econômico e valorização de direitos. “São mulheres batalhadoras que provêm de organizações sociais, profissionais comprometidas com o cotidiano das suas comunidades e é esta a nossa garantia”, frisou.
Entre estas lutadoras recém-eleitas, apontou, está a prefeita de Vinto, Patricia Arce, que foi sequestrada, torturada e teve os cabelos cortados e o corpo pintado pelas hordas fascistas, mas não se dobrou. Reconhecida sua determinação masista, foi eleita senadora por Cochabamba ao lado de Leonardo Loza e Andrónico Rodriguez, duas das mais destacadas lideranças do movimento cocaleiro.
“Mas também é importante frisar que a questão do gênero, por si só, não resolve os problemas”, apontou Dolores, “porque Áñez demonstrou ser uma tirana e, mesmo sendo mulher não teve a menor sensibilidade, não pensou duas vezes e mandou meter bala nas manifestações pacíficas de Sacaba e Senkata”. “Suas ordens deixaram quantos órfãos e viúvas?”, questionou.
Segundo a diretora executiva da Coordenação da Mulher, Mónica Novillo, são batalhas árduas no campo da luta social que agora começam a dar frutos. “As lutas das mulheres por participar nos espaços de decisão ou representação política dão conta de um processo histórico progressivo de conquistas, e essa é a história do movimento feminino na Bolívia”, disse.
Novillo recordou que a luta apontou primeiro para o reconhecimento de sua cidadania, logo para o acesso ao voto. “Também para participar nos processos eleitorais, não somente como eleitoras, mas como candidatas; para assegurar condições ao pleno exercício de sua cidadania e aceder ao poder político. Inicialmente, através das leis de cotas e, finalmente, as medidas de paridade que foram incluídas na Constituição e nas últimas reformas eleitorais”, frisou.
Igualdade de condições
A Constituição estabelece a participação equitativa em igualdade de condições na formação, o exercício e o controle do poder político (art. 26), garantindo igual participação de mulheres e homens na eleição da Assembleia Legislativa Plurinacional (art. 147). Além disso, determina que a eleição interna das candidaturas dos partidos políticos seja regulada pelo Órgão Eleitoral Plurinacional, que deve garantir igual participação de mulheres e homens (art. 210). No artigo não se menciona esta obrigação no caso das candidaturas dos povos indígenas; e se assinala que a eleição de seus representantes se fará de acordo com suas próprias formas (art. 211).
Constituição e lei eleitoral
Moradora do bairro de Callapa, em La Paz, a jovem Nadia Rosse acredita que “a Constituição e a nova lei eleitoral se somam, sendo uma contribuição fundamental para reprimir os abusos e a violência e dar igualdade a todos e todas, ao nos identificar como pessoas e não como animais”.
De acordo com o pesquisador e cientista social Porfirio Cochi, “ao se consolidarem com a promulgação da Constituição, em que se incorporam os princípios de igualdade de oportunidades, equidade social e de gênero na participação, as conquistas colocam a luta em outro patamar”. “Estes mesmos princípios são replicados nas leis de desenvolvimento como a do órgão eleitoral, a do regime eleitoral e das organizações políticas. Avanços na representação política na Assembleia Legislativa Plurinacional, nas assembleias departamentais e municipais que estão mostrando resultados e rompendo com os velhos modelos coloniais que excluíam as mulheres em razão de classe, etnia e gênero”, acrescentou Porfirio.
Na batalha por uma nova sociedade, os departamentos (estados) de La Paz e Beni são os que contam com maior representação feminina no Senado (três dos quatro), enquanto os demais departamentos têm uma representação paritária de dois homens e duas mulheres.
Vale registrar que ao longo de toda campanha eleitoral, que acompanhei por duas semanas, pude ver em destaque o rosto de Bartolina Sisa. Seja nos palanques ou em faixas, Bartolina e Túpac se encontravam sempre presentes e em destaque. Da mesma forma, vi a bandeira da libertação da Pátria tremulando lado a lado com a dos direitos das mulheres e pautas tão dolorosas e atuais como a do combate ao assédio e da violência sexual.
Que o colorido festivo que toma conta das ruas da Bolívia aponte para a construção de um Estado de “Bem-viver”, numa sociedade de mulheres e homens livres.
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