Por Leonardo Wexell Severo - Publicado no site VERMELHO
Aprovado pela Câmara e pelo Senado em dezembro de 2020, o PL foi criminosamente vetado nesta semana pelo presidente Mario Abdo Benítez, sob a alegação de que Marina Kue não poderia ser objeto de reforma agrária por tratar-se de “reserva ambiental” e que, portanto, deveria ser “preservada”. O cinismo do argumento é que ele foi lapidado e reverberado por entidades empresariais do campo – conhecidas e reconhecidas desmatadoras – e da notória WWF, “ambientalista” financiada por transnacionais, contaminadoras em todo o planeta, como a Texaco, Unilever e Huawei.
“Não é apenas o conselho de Administração da WWF que está repleta de pessoas com conexões com grandes empresas, mas a maior parte de seu financiamento vem de subvenções governamentais, fundações e sociedades”, lembrou Guillermina Kanonnikoff, do Movimento de Solidariedade aos camponeses de Curuguaty e ex-presa política da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), denunciando a hipocrisia do argumento da “defesa ambiental”. Por outro lado, ressaltou, ““Curuguaty é um exemplo de luta, cuja vitória serve de estímulo para o calendário de mobilizações pela reforma agrária, pois temos muitas tierras mal-habidas (ilícitas) em nosso país. Daí a relevância deste PL ser sancionado logo”. “Todos os que conhecem a história do local rejeitam as ‘maquiagens verdes’ feitas por grupos que tentam impedir a expropriação. Marina Kue não é reserva, é terra de lutadores”, enfatizou.
“Estamos convencidos da absoluta viabilidade, idoneidade e pertinência ambiental da terra reclamada. Confiamos no verdadeiro compromisso destas famílias camponesas para um tratamento sustentável do bosque e de outros ecossistemas envolvidos na terra outorgada na lei sancionada pelo Congresso. Não fazer isso significa uma desconfiança injustificada e um ato discriminatório”, assinalaram em manifesto a Associação de ONGs do Paraguai (Pojoaju), a Rede de Organizações Ambientalistas (Roam), a Rede Rural de Organizações Privadas sem fins de lucro ao Serviço dos Povos Indígenas (Redespi), a Coordenadora de Direitos Humanos (Codehupy) e a Associação de Rádios e Meios Alternativos (Voces).
Além disso, como recordou a Mesa Memória Histórica (MMH) – referência na luta pelos direitos humanos no país vizinho – o PL reconhece que estas terras são do Estado e motivaram uma disputa com “um poderoso grupo empresarial que se apoderou delas de uma forma ilegal”.
Para o senador Hugo Richer, da Frente Guasu (FG), “notável é a falta de caráter de Mario Abdo, a sua falta de valor para manter a postura”. “Há pouco celebrou a decisão do Congresso de desapropriar as terras de Marina Kue, até falou de reivindicação histórica, e agora simplesmente vetou o projeto”, condenou.
Contra latifundiários e narcotraficantes
Martina Paredes perdeu dois irmãos no massacre – Fermín e Luis Agustin – e tornou-se, ao lado de seu marido Dario Asuncion, sinônimo de perseverança ao coordenar a resistência e enfrentar junto aos acampados a fúria de sucessivos governos neoliberais, aliada às ameaças de latifundiários e narcotraficantes. Para Martina, “passados tantos anos, é preciso se fazer justiça e termos, com a regularização, o atendimento a necessidades básicas como a escola, a estrada e o posto de saúde”. A chegada da eletricidade, que está sendo viabilizada recentemente, descreveu, “é algo fundamental, pois temos que conviver com temperaturas superiores aos 40 graus”.
A titulação da propriedade será um ganho coletivo, assinalou Martina, “pois vai revigorar os ânimos de todos os camponeses paraguaios para que ampliem a luta e tenham o seu pedaço de terra”. “Aqui já estamos produzindo mandioca, milho, feijão, verduras e até tabaco”, descreveu.
Para o Comitê de Igrejas para Ajudas de Emergência (Cipae), a vitória no parlamento foi resultado de um processo de diálogo construtivo e transparente do qual participaram vários setores da sociedade e instituições para a regularização definitiva das terras a favor das vítimas do massacre de Curuguaty. “Marina Kue representa um longo processo de lutas sociais de enfrentamento aos grandes políticos e interesses econômicos que ainda nos espreitam”, assinalou o documento assinado pelo monsenhor Mario Melanio Medina, entre outros religiosos.
Conflito armado
Nestes campos, no dia 15 de junho de 2012, foram mortas 17 pessoas – 11 camponeses e seis policiais – num sangrento conflito armado com as digitais dos Estados Unidos. Os sem-terra serviram de justificativa para o golpe jurídico-midiático-parlamentar contra o presidente Fernando Lugo.
O “confronto” envolveu 324 policiais, tropas de elite fortemente armadas com fuzis, bombas de gás, capacetes, escudos e até helicóptero, contra 60 trabalhadores sem-terra, metade deles mulheres, crianças e anciãos. O sangue derramado, vertido para os noticiários, inundou o imaginário coletivo de mentiras e deu sustentação à destituição de Lugo uma semana depois.
A contundente denúncia de 108 (cento e oito!) fatos “notoriamente falsos” utilizados pelos acusadores demonstrou como os camponeses foram vítimas de um processo feito sob medida aos interesses das transnacionais e do latifúndio. As penas de até 35 anos por “homicídio doloso”, “associação criminosa” e “invasão de imóvel alheio” estampam como a carnificina serviu para criminalizar a luta pela reforma agrária na nação guarani. Afinal, nem um único dos policiais foi colocado no banco dos réus.
Apesar da intensa campanha nacional e internacional pela libertação dos sem-terra presos – da qual participaram ícones latino-americanos como o uruguaio Daniel Viglietti -, foi apenas em julho de 2018 que veio abaixo a mentira institucionalizada pelas transnacionais e pelo latifúndio, determinando a soltura das vítimas.
Como recordou Guillermina Kanonnikoff, “mesmo sem provas, os camponeses foram condenados em primeira e segunda instâncias”. “Na terceira instância, felizmente, três juristas honestos, de elevada moralidade e ética, revisaram a aberrante condenação e afirmaram que sem a existência de provas não se poderia prender ninguém”, acrescentou.
Negação da justiça
De acordo com a equipe de advogados, “todo o massacre foi consequência direta da negação da justiça por parte do Poder Judiciário, frente à usurpação de terras por um chefe político”. Ficou comprovado que o verdadeiro invasor foi Blas Riquelme, senador e ex-presidente do Partido Colorado, o mesmo do ditador Alfredo Stroessner, que distribuiu ao menos oito milhões de hectares – um quinto das terras do país a apaniguados como o “empresário” em questão. Este foi o primeiro “disparo”, sustentam os advogados.
Um dos comandantes da ação, Erven Lovera, era irmão do tenente-coronel Alcides Lovera, chefe da guarda pessoal de Lugo e “guarda-costas” do golpista Horacio Cartes. Para o advogado Victor Azuaga, “Erven conhecia o plano, mas não sabia que era parte dele. Temos um áudio em que diz: quando dispararem do helicóptero, dispararemos aqui embaixo”. O exame do corpo de delito de Ervin aponta para “tiros precisos de forma linear, com armas potentes e de grosso calibre”, eliminando a possibilidade de participação dos camponeses em seu assassinato. Nenhuma das garruchas encontradas no acampamento disparou.
Mais do que nunca, a nação paraguaia continua clamando por justiça para cada um dos sem-terra abatidos. É preciso recordar de Adolfo Castro, de 28 anos, que se rendeu ao ver que os policiais haviam levado o seu filho de três anos, e foi abatido com um tiro no rosto; Avelino Espínola (Pindu), 54 anos, agarrado pelo pescoço, rendido e executado; Fermín Paredes González, 28 anos, que, ferido, pediu ajuda, mas de nada adiantou; Andrés Riveros, 67 anos, que abriu os braços e, rendido, foi abatido; Delfín Duarte, 56 anos, morto com um tiro na boca; Francisco Ayala, 38 anos, assassinada com um tiro na cabeça; Luis Agustín Paredes González, 26 anos, que teve a massa encefálica destruída; Luciano Ortega, 18 anos, filho único, morto enquanto buscava a mãe, após ter colocado o pai a salvo. Foram igualmente abatidos a tiros Santos Agüero Romero, 23 anos, que auxiliava o pai na produção agroecológica, Arnaldo Ruiz Díaz, 35 anos, e Ricardo Frutos Jara, 42 anos.
Conforme Guillermina Kanonnikoff, os sobreviventes do massacre e os familiares das vítimas ocuparam as terras reivindicadas e agora, com o acesso a serviços básicos, farão do local um assentamento modelo, “livre daqueles que o queriam na ilegalidade, subordinado aos interesses dos narcotraficantes”. “Agora, esta mensagem é de nascimento e comunhão. Serve de alívio, de paz e amor, do surgimento da comunidade que tanto sonhamos, de terra prometida. É um símbolo de esperança”, destacou. Exemplificando as razões dos festejos que se multiplicaram nos últimos dias em Marina Kue, Guillermina comemorou o reconhecimento da escola para mais de uma centena de crianças, a arrumação da estrada e o começo da construção da rede elétrica, cuja fiação estará pronta já em fevereiro.
Pobreza extrema
No país vizinho, o mais pobre da América do Sul e um dos dez mais desiguais do mundo, as taxas de pobreza extrema são três vezes mais altas entre as comunidades indígenas e rurais. Uma pequena elite latifundiária de 2% da população – de 7,1 milhões de habitantes-, com importante participação de proprietários estrangeiros, concentra 78% das terras cultiváveis. A produção é fundamentalmente destinada à exportação (94%), para o consumo de mais de 70 milhões de pessoas mundo afora. Turbinados por isenções fiscais e com o aumento da exploração da mão de obra, as lavouras avançaram imensamente na última década, com destaque para o arroz (240%) e a soja (180%). Assim como a soja, o algodão transgênico é altamente poluente. Enquanto isso, pela “lógica” do agronegócio, 800 mil paraguaios passavam fome – mais de 10% da população, em 2018 – segundo a Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). A pobreza, há dois anos, atingia 24% da população, números que só se agravaram em tempos de pandemia.
Foram mais de oito anos de luta de familiares e vítimas do massacre, no episódio de maior violência na luta pela terra no Paraguai, em que participei como observador internacional e colaborei com a publicação de dois livros “Curuguaty, carnificina para um golpe” (Editora Papiro, 208 páginas, 2016) e “Curuguaty – O combate paraguaio por Terra, Justiça e Liberdade” (Editora Papiro e CPC-UMES, 96 páginas, 2018), auxiliando com a campanha pela elucidação dos fatos.
Documentário
Com a contribuição da Coordenadora de Direitos Humanos do Paraguai e o apoio da Oxfam no Paraguai foi produzido recentemente um audiovisual em cinco capítulos. O documentário traz uma série de entrevistas com sobreviventes, familiares e especialistas, incluindo um testemunho de camponeses que estiveram injustamente presos na penitenciária pelo ocorrido em Curuguaty.
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