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MP 914, mais uma tentativa de intervenção nas Instituições Federais de Ensino Superior

  • Foto do escritor: Curitiba Suburbana
    Curitiba Suburbana
  • 30 de dez. de 2019
  • 5 min de leitura

Por Prof° Eduardo Salamuni


No dia 24 de dezembro, o Presidente Jair Bolsonaro enviou uma Medida Provisória (MP 914 / 2019) ao legislativo buscando modificar as regras da eleição para Reitor das Universidades Federais e Institutos Federais. Há vários aspectos a serem analisados neste ato, que foi considerada mais uma tentativa de fustigar as instituições públicas de ensino superior (IFEs).


Antes da análise, propriamente dita, é preciso explicar que a partir de meados da década de 80 as IFEs democratizaram a escolha de seus dirigentes, que antes invariavelmente eram prepostos indicados pelo governo federal. Assim, de lá para cá, o processo de escolha vem se aperfeiçoando no sentido democrático ao envolver as três categorias que formam acomunidade universitária, ou seja, professores, servidores técnicos-administrativos e estudantes.


Em síntese, por ocasião da eleição para Reitor as três categorias elaboram um processo de consulta geral à comunidade, após candidatos interessados em assumir a direção (unicamente representantes da categoria dos professores) se apresentarem como postulantes ao cargo. Em geral os candidatos estão no nível de Titular ou Associado 4, os dois últimos níveis da carreira docente. O pleito é realizado partindo-se do princípio paritário, isto é, cada categoria equivale a1/3 do peso da eleição. O peso de cada voto, no entanto, é inversalmente proporcional ao total de votantes potenciais em cada categoria. Por exemplo, como na UFPR o número de professores, inclusive aposentados, é maior que 4.000 e de estudantes chega a perto de 40.000 o valor de cada voto individual de professores, nesse caso, equivale a cerca de dez votos de estudantes. No caso dos técnicos o universo de votantes está em torno de seis mil.


O pleito é, na verdade, uma consulta para definir qual dos postulantes a comunidade universitária escolhe como Reitor. O nome do mais votado é submetido ao Conselho Universitário que, por direito, montará a lista tríplice a ser enviada à apreciação presidencial. Tem sido praxe que o Conselho Universitário encaminhe a lista tendo o mais votado na cabeça, e colocando na lista outros dois nomes da confiança do eleito. Essa prática leva em consideração que todos os governos, desde a redemocratização, nomearam o primeiro da lista tríplice, com apenas uma exceção, até o início do presente governo de Jair Bolsonaro que infringiu essa prática por seis vezes.


Passado os preâmbulos se impõe a análise da questão. Inicialmente cabe abordar o mérito da MP, ou seja, a de impingir regras para a eleição de Reitor. Duas mudanças importantes foram impostas; a que altera a paridade porcentual entre as categorias, definindo que os professores irão compor 70% do colégio eleitoral, enquanto as outras duas categorias comporiam, cada uma delas, 15% do total do colégio. Isso significa que o valor do voto de cada professor que já era maior, torna-se ainda mais imperativo no pleito. Essa cláusula altera uma questão praticamente já vencida dentro da comunidade, pois se entende que também os servidores técnico-administrativos são parte fundamental da comunidade. Sem eles não há como uma universidade funcionar e como não são transitórios, posto que são concursados, o interesse como categoria os legitima à regra da paridade. Quanto aos estudantes, a regra da paridade consolida a democracia interna, mas também é pedagógica, posto que ajuda os estudantes a perceber e a se conscientizar em sua formação cidadã, que a convivência democrática é fundamental para a sociedade. É legítimo, pois, que participem das discussões e do pleito com igualdade de direitos, mesmo que sua permanência na instituição seja transitória, afinal são os agentes diretamente afetados pela maioria das decisões da direção das instituições às quais estão ligados. Esse escopo democrático foi conspurcado no texto da MP, relegando servidores e estudantes a um papel secundário no pleito, o que é inadmissível em se tratando da democracia interna.


Todavia, algo muito importante a se verificar nessa mudança é que fere a Lei 11892/2008, que em seu artigo 12, institui a paridade de 1/3 de representatividade no pleito para a Reitoria para cada categoria. Assim sendo, não é apenas uma questão de costume interno, mas sim um problema de ilegalidade da MP.


O segundo ponto de análise é exatamente esta, a de legalidade. As decisões internas de cada instituição são fruto de uma cláusula constitucional, artigo 207, que dá às IFEs autonomia de decisões administrativas, financeiras e pedagógicas. Obviamente deve-se guardar o respeito aos currículos mínimos e outras decisões do MEC no sentido pedagógico, bem como submeter-se aos controles externos (AGU, CGU e TCU, que são os braços de controles administrativos da sociedade), desde que tenham lógica e bom senso. A MP corrói esta cláusula e engessa a autonomia expressa na lei maior, inclusive retirando dos conselhos universitários a prerrogativa de decidir sobre as políticas internas de cada instituição. É preciso explicar que os conselhos universitários são formados pelos diretores setoriais, por professores representantes dos vários níveis da carreira (auxiliares, assistentes, adjuntos, associados e titulares), por servidores técnico-administrativos e estudantes, que fazem parte dos conselhos superiores - conselhos de administração e planejamento e conselhos de ensino e pesquisa.Todos os participantes desses conselhos foram eleitos para tal delegação e que, no conjunto, perfazem um universo de visões políticas setoriais e equilibrada orientação ideológica, no sentido mais amplo dessa palavra tão desgastada nesses tempos de sombra.


O artigo 207, porém, não é o único a ser violado, mas também o artigo 62 da constituição está sendo desobedecido. Ali está claro que uma MP deve se basear na justificativa da urgência e da necessidade de celeridade para que a sociedade não sofra prejuízos eventuais dos trâmites demorados das casas legislativas. Não é o caso da MP 914, pois não há nenhum argumento em favor da urgência.


Mas então qual foi o fato motivador dessa ação autoritária do Governo Federal? A resposta está na recusa de anterior proposta autoritária do MEC lançada meses atrás. Trata-se do projeto Future-se, que caiu como uma bomba dentro das IFEs, pois sua análise, em síntese, revelou que se tratava de um projeto de aniquilação das instituições do ponto de vista financeiro e administrativo, inclusive propondo que elas fossem geridas por Organizações Sociais (OS), o que significaria uma privatização escamoteada. Quando as instituições importantes rejeitaram totalmente o projeto, por meio de decisões dos Conselhos Universitários, o governo arquitetou uma maneira de erodir esses conselhos e o resultado é a MP 914. Ou seja, essa medida é intervencionista e tenta descaracterizar a democracia interna das IFEs. Ela só encontrará alguma ressonância interna em algum pretendente amoral ao cargo de Reitor, que participará do pleito, mesmo sabendo que não respeitará o resultado ao aceitar sua própria indicação mesmo não tendo sido o mais votado.


Essas são as análises do ponto de vista de política setorial no que concerne ao ensino superior público. Mas há algo bastante preocupante no que se refere à relação de forças entre os poderes. O que o Executivo fez na prática, tentando empurrar a MP 914 goela abaixo do legislativo, é evitar que a medida seja debatida, emendada ou até recusada. O legislativo não deveria aceitar esse papel de coadjuvante, pois na prática estará renunciando ao seu papel de legislador até nas questões administrativas corriqueiras, o que enfraquece ainda mais seu fundamental papel na sociedade.


Como contraponto à medida despótica, já há reação dentro das IFEs e, mais importante ainda, dentro do Senado e da Câmara Federal. Afinal não se pode admitir, por princípio, que qualquer governo, mesmo com ideologias díspares entre si, tente ou proponha mudanças constitucionais que afetem tão seriamente as IFEs, sem justificativa e, principalmente, sem qualquer discussão com os dirigentes das instituições, seus representantes legitimados para tanto.




Prof. Eduardo Salamuni - Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Geologia - Universidade Federal do Paraná. Diretor administrativo da associação dos Professores da UFPR.


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