Por Waldir Rampinelli
Lima Barreto é pouco lido na esquerda brasileira. Machado de Assis é muito estudado nas academias.
Lima Barreto, que inaugura o realismo crítico nacional-popular na literatura brasileira, ainda hoje passa inadvertido para grande parte da esquerda no país. Ele é elogiado como cronista urbano carioca e como grande defensor das causas populares, mas silenciado em sua tradição realista, genuinamente nacional, e também em seu caráter democrático-popular.
Lima é contemporâneo do surgimento das primeiras manifestações do proletariado organizado; é crítico da aliança entre a “moderna” República nascente e o imperialismo estadunidense; é visionário sobre a tendência à conciliação entre os “agraristas” e os “industriais”, impedindo toda autentica participação popular; é propagador do nacionalismo, batendo duro na ideologia eurocêntrica; é autodidata, desmascarando o academicismo das universidades produtoras da “doutomania”; é defensor da igualdade entre homens e mulheres, rejeitando o feminismo pequeno burguês de Bertha Lutz, que buscava direitos políticos para as mulheres sem confrontar o patriarcado e o capitalismo como sistema de exploração; é militante da causa negra, brandindo uma espada afiada contra o preconceito de cor e o de classe; é crítico contumaz do monopólio da imprensa, como também dos políticos de profissão; é combatente do latifúndio, propagando a necessidade da reforma agrária, indispensável ao desenvolvimento da economia nacional; é antimilitarista ferrenho, aderindo à candidatura civilista de Rui Barbosa contra o general Hermes da Fonseca; é anticlerical e antieclesial, mostrando a dominação ideológica dos conventos e a aliança do Vaticano com as classes dominantes esparramadas pelos continentes; é defensor da Revolução Russa, elogiando suas consequências mundo afora; enfim, um socialista propagador da luta de classes; um anarquista, que afronta a organização social. Tudo isso ao mesmo tempo.
Lima sempre se opôs à tese do “intimismo à sombra do poder” (conceito de Thomas Mann, citado e comentado por Georg Lukács), aquela na qual, os intelectuais, não acreditando na possibilidade de influenciar de forma decisiva sobre as mudanças sociais, fogem da realidade concreta, buscando o terreno da autonomia e não pondo em jogo as questões decisivas da vida humana. Para Carlos Nelson Coutinho, Machado de Assis, “obrigado a lutar contra grandes obstáculos pessoais e sociais, viu-se compelido a algumas conciliações externas, assumindo como personalidade literária certas formas deste “intimismo à sombra do poder”, que havia desmistificado, desapiedadamente, em seus romances e contos” (Literatura e Ideologia en Brasil, Cuadernos Casa 32, Cuba, 1986).
Aqui, reside toda a diferença entre Lima Barreto e Machado de Assis. Para Lima, a literatura não era apenas escrever bonito; ela não é um instrumento de prazer para os ricos; ela não é o “sorriso da sociedade”, como diria Afrânio Peixoto. Tampouco admitia Lima a literatura contemplativa, a literatura plástica, a literatura apenas pela literatura. Ele é o escritor da literatura militante.
Lima e Machado são duas concepções: enquanto este fazia a literatura pela literatura, aquele desejava algo mais do que isso. Lima não gostava que o comparassem a Machado porque “Machado escrevia com medo do Castilho e escondendo o que sentia, para não se rebaixar; eu não tenho medo da palmatória do Feliciano e escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto”. (Correspondência II, p. 257).
Lima estava envolvido, quase que só, em um duro combate contra todas as manifestações do “intimismo à sombra do poder”, contra todas as formas de esteticismo burocratizante; já Machado mostra uma aparente falta de humanidade, um possível abandono das específicas funções sociais e humanistas da literatura. Em carta a Austregésilo de Ataide, escreve Lima: “Gostei que o senhor me separasse de Machado de Assis. Não lhe negando os méritos de grande escritor, sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet – vá lá; mas Machado nunca!” (Correspondência II, p. 257).
Lima procura uma literatura que conjugue indissoluvelmente a grandeza estética com um profundo espírito popular e democrático, com uma clara tomada de posição em favor dos “humilhados e ofendidos”; Machado, não. Machado vive o mito da “democracia coroada” do Império; Lima é contemporâneo do surgimento das primeiras manifestações do proletariado organizado, na República.
Infelizmente, diz Carlos Nelson Coutinho, velhos obstáculos histórico-sociais continuam a impedir o avanço do realismo literário. O “modelo prussiano” (conciliação com o atraso) prevaleceu nos movimentos de transformação ocorridos nos últimos cinquenta anos, após a morte de Lima Barreto (1922). Coube, no entanto, à literatura nordestina – um movimento realista muito expressivo de nossa história – recolher de Lima Barreto “tanto a visão do mundo democrático-popular como o conceito ‘participante’ do ofício literário”. Não sem razão, José Lins do Rego vai dizer: “O manso Machado de Assis não nos dá esperança; o “vazio”, o “inconstante”, o terrível demolidor Lima Barreto nos faz confiar num mundo melhor. (O cravo de Mozart é eterno, p.98).
“São os do Norte que vêm”, costuma dizer Manuel Bandeira.
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