Por Wilson Ramos Filho (Xixo)
A bíblia e a constituição não dizem nada. Quem diz o que elas dizem são seus intérpretes. Ambas são apenas textos, palavras encadeadas.
O conteúdo da bíblia é dado pelos intermediários, por aqueles que dizem o que a bíblia diz. Um padre progressista extrairá dos enunciados semânticos um sentido que pode ser antagônico àquele proferido por um pastor evangélico mentalmente sequelado por culpas inconfessáveis. A atribuição de sentido individual, pela leitura das frases e das metáforas, sempre é mediada pelas vozes autorizadas (papa, pastores, padres, bispos e bispas, teólogas e teólogos) e pelos contextos particulares de cada um.
Com a constituição federal se dá o mesmo. Ela é apenas um texto, um amontoado de palavras. O sentido semântico é dado pelos seus intérpretes, que dizem o que ela diz. Lula ficou 580 dias preso porque os intérpretes privilegiados da constituição, os onze iluminados, decidiram ideologicamente que ele deveria ser impedido de participar da vida pública, apesar da literalidade do texto constitucional assegurar a presunção de inocência, o devido processo legal e a duração razoável dos processos. Demoraram 580 dias para decidir e, ainda assim, 5 ministros insistiram em dizer que o texto dizia algo que contrariava sua literalidade.
Recentemente ocorreu algo semelhante a respeito da possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Cinco ministros, contrariando a literalidade do texto constitucional, interpretavam a vedação expressa como permissão, porque a constituição diz o que os intérpretes dizem o que o texto diz.
Quando o presidente diz que a bíblia está acima da constituição (https://m.guiame.com.br/gospel/noticias/acima-da-constituicao-esta-biblia-sagrada-diz-bolsonaro-em-convencao-de-igrejas.html fbclid=IwAR0g89ziFKRvGSjqmrT7B9tuJjQlDsZalbq2DTA_xgzIpg5feEZYrryFOCM) está, por um lado, afirmando uma obviedade de nossa realidade bolsonara, e, por outro lado, está reforçando a ideia de que a bíblia, como texto normativo, é hierarquicamente superior à constituição, uma espécie de grundnorm kelseniana.
É a tal « interpretação conforme ». Das leis conforme a constituição e desta conforme a bíblia, que diz o que o Silas Malafaia ou o Papa Francisco dizem que a bíblia diz. Cada um que escolha o intérprete preferido. Estes, como se constata desde o Golpe de 2016, podem tudo. Até decidir contra a literalidade dos textos gramaticais.
O direito morreu. Ficou cada vez mais parecido com o que os juízes pensam a respeito dele e isso lhe foi fatal. Já a bíblia, aquele amontoado de palavras e de metáforas, segue mais viva do que nunca, espargindo obscurantismos, fortalecendo mitos, impondo condutas e induzindo submissões. Seus intérpretes privilegiados, aqueles que dizem o que a bíblia e a Constituição dizem, constituem a maneira bolsonara de existir em sociedade.
Wilson Ramos Filho (Xixo), presidente do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora
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