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Foto do escritorCuritiba Suburbana

Feminicídio

Por Wilson Ramos Filho


Tempos atrás um médico pedalava na lagoa, no Rio. Dois tentaram roubar-lhe a bicicleta. Resistiu. Facada. Morreu.


Indignação e revolta em pequeno grupo de intelectuais e artistas no bar do Leblon que, por falta de opção, forasteiro sulista, frequentava.


Absurdo, onde já se viu. É preciso dar um basta. Coitado. Podia ser um de nós. Cadê a justiça, ninguém vai fazer nada?


Na Gávea, sábado seguinte, haveria uma manifestação pela paz, todos de branco, convidaram-me.


Quem é de fora às vezes vê o que as carioquices escondem. Coincidiu topar com uma estatística com o número de mortos naquele fim de semana da facada no médico. Não lembro agora, mas passava de 100 o número de mortes violentas em decorrência de roubos ou de entreveros nos bairros populares, que os cariocas, simpáticos, denominam como comunidades.


Com minha proverbial tendência à inoportunidade e meu especial talento para ser desagradável, fiz a pergunta impertinente. Causou revolta minha indagação a respeito da real razão para que esta, não as demais, cotidianas, mortes de pobres, causava tanta indignação.


Tem coisas que não devem ser questionadas. Simplesmente não fazia sentido para aquele grupo de sensíveis e cultivados espíritos meu déficit cognitivo para perceber a gravidade do que se passara na boda da lagoa, entre o Humaitá e Ipanema.


O assassinato de uma juíza pelo companheiro, no natal (percebi pelas postagens no feicebuque), gerou reações semelhantes àquelas quando um de nós foi esfaqueado enquanto pedalava. Todavia, como não sou besta e como aprendi que certas coisas não devem ser perguntadas, nem questionadas, não mencionarei estatísticas de feminicídio, nem aludirei à inegável importância social deste mais recente, diferente, pois a vítima era juíza com méritos aferidos por concurso.

Passa da hora de discutirmos seriamente o feminicídio, o porte de armas, a violência urbana, a distribuição de renda, em todas as classes sociais, escapando das armadilhas do apelo ao punitivismo barato e aos impulsos do recurso à ironia ou da indiferença seletiva. Todas as vidas importam.


Não é bom viver nessa realidade bolsonara.


Wilson Ramos Filho (Xixo), doutor em direito, professor na UFPR, presidente do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.

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