O egoísmo de Max Stirner na música de Raul Seixas. Por Amanda Muniz
Que Raul Seixas era uma figura excêntrica, não há dúvidas. Que não apenas inovou como também revolucionou o cenário musical brasileiro, ao flamejar seu rock e seu grito em Shows, LP’s, rádios e mesmo programas de televisão, é evidente. Mas o fato de que o cantor pode ser visto como pensador e leitor de autores diversos, isso ainda está encoberto em brumas. Muitas das músicas de Raulzito possuem um Que Raul Seixas era uma figura excêntrica, não há dúvidas. Que não apenas inovou como também revolucionou o cenário musical brasileiro, ao flamejar seu rock e seu grito em Shows, LP’s, rádios e mesmoconteúdo crítico: Ouro de Tolo reflete o vazio sentido pelo eu - lírico quando da realização do sonho burguês; Sociedade Alternativa, convidando todos os indivíduos para a formação de uma sociedade não opressora, fiel apenas a vontade individual de cada ser; A Maçã, pregando a liberdade afetiva e a necessidade de se compreender o poliamor1. Com ideias transgressoras, sem parar na pista um minuto que seja, Raul cantou tudo que lhe veio na cabeça. Mas o que intriga e corrói, ainda hoje, são as origens destas ideias. Ocultismo? Viagens Alucinógenas?
Abduções Alienígenas? Talvez um misto disso tudo, acrescido de um ingrediente crucial: a leitura.
Nunca se saberá, ao certo, o que o Maluco Beleza leu ou deixou de ler; o que engoliu e o que regurgitou. Sabe-se que era, a seu próprio modo, um intelectual: almejava escrever um tratado de filosofia; foi aprovado em primeiro lugar para o curso de Direito (embora tenha se safado dos amores e dissabores desta área do saber, pois não a cursou); teve contato com gênios, sábios, alquimistas e conquistadores. E, como todo contato humano que infecta, contamina e impregna, nem que seja para ser, logo após, amputado, tais contatos deixaram marcas.
O presente trabalho iniciou-se quando a Autora, ouvindo Raul para preparar sua dissertação de mestrado, deparou-se com uma versão diferenciada da música2 Eu sou egoísta - uma de suas preferidas. Na introdução, um diálogo ficto entre Max Stirner e um homem do futuro delineavam contornos do que a Autora viria a saber futuramente como sendo o egoísmo stirneano. Intrigada com este conceito inteiramente novo, resolveu abandonar suas leituras jurídicas de norma e sanção para deparar-se com o pensamento anarquista de Max Stirner. Ali, vislumbrava-se o prelúdio da música Raulseixista; ali estava explicado em pormenores o egoísmo cantado por Raul.
Tendo como Co-autor um historiador, filósofo e roqueiro (aposentado), a ideia ganhou forma e se constitui em trabalho. Neste ensaio, portanto, procura-se realizar uma análise da música Eu sou egoísta, a partir do egoísmo de Max Stirner, de forma a apresentar um Raul não apenas transgressor, mas também pensador (e porque não?) intelectual. Não há (e nunca haverá) certeza de que Raul o tenha lido, mas os indícios encontram-se evidentes. O egoísta raulseixista encontra base no egoísta stirneano, se não pelo contato direto, pela simples certeza de que mentes brilhantes tendem a se aproximar no mundo das ideias.
Esclarecidos tais pontos, faz-se necessária uma breve apresentação de Max Stirner e de seu pensamento; como o foco do trabalho é o egoísmo stirneano cantado por Raul, este será o tema da obra a ser destacado; o que não significa, por óbvio, que o Autor trate unicamente disso. Seu trabalho é amplo e vasto, tendo tratado da sociedade, associação, críticas ao liberalismo, ao socialismo e ao cristianismo, dentre outros assuntos.
Max Stirner: nem simplista, nem fascista – um egoísta
Antes de abordar as ideias sobre egoísmo de Max Stirner, uma breve apresentação do Autor se faz necessária. Conforme Gagliano (2007), Stirner, nascido como Johann Kaspar Schmidt, veio ao mundo em 1806 em Bayreuth, Alemanha. De origem humilde, estudou filosofia na Universidade de Berlim, tendo de interromper os estudos em razão de problemas de saúde de sua mãe. Ao retornar à Universidade, mal conseguiu pontuação nos exames que lhe dariam certificado para lecionar; trabalhou como estagiário não remunerado e não teve sucesso ao tentar obter um posto assalariado. Frequentador do Hippel’s Weinstube, local onde os hegelianos do grupo Dien Frein (Os livres) se reuniam, ali Stirner teve contato com os irmãos Bauer, Marx, Engels, entre outros.
Em 1843, Stirner publica sua polêmica obra O Único e sua Propriedade. É neste livro que Stirner externa as máximas de seu pensamento egoísta: temas como sociedade, cristianismo, humanismo, socialismo e liberalismo são tratados pelo Autor de uma forma ácida e original. Para efeitos deste ensaio, entretanto, teremos por foco o egoísmo. Stirner (2004) inicia sua obra afirmando que a alienação está diretamente ligada ao desenvolvimento da individualidade; ele analisa este desenvolvimento a partir de três momentos: infância, adolescência e idade adulta.
Na infância, o indivíduo luta contra o mundo; busca encontrar e afirmar a si próprio. Observa e experimenta as coisas, tenta desvendar fundamentos. Teme e respeita o que lhe é exterior, até que descobre o espírito. O espírito no pensamento stirneano é a descoberta do mundo além-matéria: são as ideias, as teorias, a metafísica.
Na juventude, o indivíduo adota um comportamento teórico. Não se confronta com as coisas, mas com imperativos de sua consciência. O jovem ocupa-se de pensamentos, e só se interessa pelo mundo quando nele vê a manifestação do espírito. Reconhece que ele próprio é espírito, mas não completo e perfeito. Assim, ele se perde e se humilha diante de um espírito perfeito13, além de si – e sente assim o seu vazio.
Saliente-se: espírito perfeito não é sinônimo apenas de Deus, mas de qualquer ideia metafísica que supostamente é superior ao humano: humanidade, sociedade, etc.
Na fase adulta, o indivíduo adquire um interesse pessoal - egoísta – não apenas pelo espírito, mas pela totalidade do indivíduo. O homem se descobre como espírito corpóreo. Para Stirner (2004), assim como ele estava por trás das coisas na qualidade de espírito, ele está por trás do pensamento como criador e proprietário: não há nada além de si, e é por isso que não deve se curvar a ideias, sendo ele próprio delas criador. Realista, idealista, egoísta: estas são as etapas da vida, caminhos percorridos pelo indivíduo em direção a si próprio.
O egoísmo de Max Stirner na música de Raul Seixas
Conforme dito anteriormente, o egoísmo de Max Stirner aparece de forma latente em Raul Seixas. Diversas músicas poderiam ser analisadas para comprovar este fato14, mas como afirma Barral (2003), ao escrever sobre as delimitações em trabalhos acadêmicos, é necessário que o pesquisador delimite seu trabalho ao máximo e não assuma tarefas hercúleas, as quais não pode cumprir. Desta forma, escolheu-se a música Eu sou egoísta; isto porque além de elencar o egoísmo de forma explícita (conforme seu título), ela traz uma compilação do pensamento de Stirner sobre o assunto. É como se nessa canção Raul descrevesse, de forma artística, o que Stirner descreve de forma acadêmica. Escrita por Raul Seixas em parceria com Marcelo Motta, Eu sou egoísta é a quarta faixa do álbum Novo Aeon, de 1975. Uma nova versão foi regravada em 1984, sendo incluída como a oitava faixa do disco Metrô Linha 743, de 1984. Exceto por questões de ritmo e acordes, que não serão trabalhadas no presente Artigo vez que extrapola os objetivos propostos, e exceto por uma pequena troca de palavras a ser oportunamente abordada, as músicas, em suas letras, são idênticas. Assim, a análise será feita com base na versão de 1975; quando necessário, as diferenças entre esta e a versão de 1985 serão apontadas. Na versão de 1975, a música inicia-se com um acorde rítmico de pianos; na versão de 1985, o acorde é feito ao som de um violão, seguido de uma risada irônica
de Raul Seixas. Já na primeira estrofe, tem-se elementos do que seria o não egoísta, ou o egoísta involuntário de Stirner. Observe-se:
Se você acha que tem pouca sorte / Se lhe preocupa a doença ou a morte/ Se você sente receio do inferno /Do fogo eterno, de deus, do mal.
O interlocutor de Raul, você, pode ser interpretado como alguém que se sente inferior; “tem pouca sorte”, vive preocupado e assustado com conceitos abstratos, maiores que sua própria existência. É a infância narrada por Stirner personificada neste refrão; temendo espíritos maiores e mais poderosos, o interlocutor se encolhe – reduz-se, assustado com a grandiosidade de conceitos abstratos. Na segunda estrofe, em contrapartida ao você, tem-se o eu. Este sujeito já é apresentado como ousado; nada teme, faz o que quer, pensa o que quer e não está submetido à ideias supostamente superiores. Ele se basta, conforme pode-se inferir:
Eu sou estrela no abismo do espaço / O que eu quero é o que eu penso e o que eu faço / Onde eu tô não há bicho-papão / Eu vou sempre avante no nada infinito / Flamejando meu rock, o meu grito / Minha espada é a guitarra na mão
O Eu é uma estrela no abismo do espaço; resplandecente, brilhante: em glória. Não se submete a causas, ideais ou conceitos abstratos: faz e pensa apenas o que quer, é um servo de si mesmo. O local onde o Eu habita prescinde de bicho-papão; ou seja, não há figuras imponentes para amedrontá-lo ou submetê-lo – é dizer, não há ideias fixas capazes de lhe tornar possesso. Interessante destacar aqui que na versão de 1985, a expressão bicho-papão é trocada por sombra de Deus. A frase então transforma-se em: “Onde eu tô não há sombra de Deus”. Embora a primeira vista possa parecer que essa troca altera sobremaneira a interpretação da música, entende-se que na verdade há apenas uma explicitação do conteúdo transmitido.
Deus ou Bicho-papão encarnam o mesmo sentido; figuras assombrosas, capazes de submeter: uma pelo medo infantil do grotesco desconhecido; outro, pela ameaça constante de uma danação eterna. Neste sentido, Deus e Bicho-Papão podem ser compreendidos como palavras utilizadas para expressar ideias fixas que submetem o Você – subserviente pois temente ao fogo do inferno, a Deus e ao mal – mas não submetem o Eu, que só possui compromisso com sua vontade. O Eu não teme o desconhecido; não teme manifestar-se por meio da música, e fazer dela
arma de combate. Este Eu tão comprometido com a sua vontade única e o seu destemor das ideias fixas que aprisionam, só pode ser o Eu Egoísta.
Embora ainda não explícito, as características apresentadas na segunda estrofe fornecem arcabouço o suficiente para acreditar nisso. Em contrapartida, o Você aprisionado e subserviente, foge ao confronto. Prefere submeter-se do que empunhar uma guitarra e lutar por si e para si próprio. É o que se depreende da próxima estrofe:
Se o que você quer em sua vida é só paz / Muitas doçuras, seu nome em cartaz / E fica arretado se o açúcar demora /E você chora, cê reza, cê pede... implora...
O Você é um acomodado. Não quer seguir sua vontade, pois isso implica em confronto – em especial com as ideias fixas de Deus ou Bicho-Papão. O Você quer apenas paz, tranquilidade e o gosto de ser condecorado como herói, tendo seu nome em cartaz. Neste sentido, pode-se inferir que o você entende-se como altruísta; merece ter seu nome em cartaz pois sacrifica a sua individualidade em prol dos demais. É preocupado e receoso, por isso não se faz senhor de si; e por isso almeja honrarias. Mas logo se aborrece, pois este açúcar demora. O altruísmo, conforme Stirner (2004), não condecora, não honra – apenas evanesce a individualidade do ser. E portanto o egoísta involuntário, que se entende como altruísta, sofre. Apela a supostos poderes maiores; implora pelo reconhecimento de algo que não existe.
Enquanto eu provo sempre o vinagre e o vinho / Eu quero é ter tentação no caminho / Pois o homem é o exercício que faz / Eu sei... sei que o mais puro gosto do mel / É apenas defeito do fel / E que a guerra é produto da paz
Em sentido oposto, o Eu egoísta que nada teme, segue seu caminho fiel a sua vontade, apto a enfrentar as mais diversas provações – boas ou más. O egoísta se arrisca, desafia; livre que está do temor a qualquer poder superior, é capaz de provar por si mesmo. Não é ingênuo; conhece os paradoxos e dicotomias da humanidade, que almejando servir uma causa – como por exemplo, a ideia de paz - se torna possessa, no sentido stirneano, e acaba por desencadear guerras.
O que eu como a prato pleno / Bem pode ser o seu veneno / Mas como vai você saber... sem tentar?
De forma semelhante à estrofe anterior, o Eu egoísta desafia o Você a tentar novas experiências, pensar por si. Como saber diferenciar o que lhe faz mal ou bem, sem realizar tentativas?
Se você acha o que eu digo fascista / Mista, simplista ou antissocialista / Eu admito, você tá na pista / Eu sou ista, eu sou ego / Eu sou ista, eu / sou ego / Eu sou egoísta, eu sou / Eu sou egoísta, eu sou / Por que não?
E é na última estrofe da música, apenas, que o Eu se assume enquanto completo egoísta. Afirma que suas falas podem ressoar fascistas; entendemos aqui que o fato de se assemelhar ao fascismo refere-se não ao movimento fascista em si, mas a uma fala que aos ouvidos desatentos parece perversa, vez que o egoísmo possui sentido pejorativo em nossa sociedade. Mista ou simplista também não seriam conceitos adequados, porque o pensamento egoísta na verdade, é extremamente complexo. O antissocialismo a que se refere já é mais claro: o egoísta rejeita o social; aderir à sociedade é abrir mão de sua individualidade. Todavia as especulações não estão completamente equivocadas; o eu - lírico é, em verdade, um egoísta. Embora a presente análise parta do pressuposto subjetivo daquele que analisa, o que pode fazer com que algumas nuances pareçam tortuosas aos olhos de outros, entendemos que o cerne da música – o egoísmo – encontra-se pautado nas ideias de Max Stirner, em razão de tudo o que foi escrito.
Considerações Finais
As origens das diversas ideias propagadas por Raul Seixas em suas canções permanecem em brumas. Nunca se saberá o que de falo o Maluco Beleza leu, ou deixou de ler; o que usou propositalmente e o que não disse, propositalmente. Todavia, fortes indícios de pensamentos diversos, sobretudos da vertente anarquista, podem ser encontrados em suas canções. Neste sentido, o presente ensaio procurou demonstrar como o egoísta raulseixista encontra eco no egoísta stirneano; o egoísta que não se curva à ideias fixas e zomba dos possessos e dos loucos que elegem para si uma causa que os consomem. O egoísta que flameja seu rock e seu grito, sem medo de fantasmas ou espíritos, porque ele por si é uma estrela no abismo do espaço, servo apenas de seu próprio desejo e vontade. Saliente - se que os escritos de Max Stirner são abrangentes; nem tudo pode ser elencado e alocado nestas dezesseis folhas A4, mais em razão das delimitações metodológicas que da vontade dos Autores. Procurou-se focar na figura do egoísta, fazendo-a emergir tanto da obra de Stirner, quanto da composição de Raul Seixas, para assim delinear suas aproximações e semelhanças; tais similaridades poderiam apontar, até mesmo, para uma possível conexão Raul e o anarquismo. Mas isso já é tema para outro ensaio...
Trabalho publicado no ano de 2015, para o II Congresso Internacional de Estudos do Rock − UNOESTE.
Sobre a Autora:
Amanda Muniz Oliveira − Professora Adjunta na Universidade Federal do Pampa. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e Mestra em Direito pela mesma Universidade. Graduanda em Ciências Sociais. É pesquisadora e uma das coordenadoras do Lilith - Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos (Cnpq/UFSC). Coordenadora do Anátema: Núcleo de Pesquisas em Produção do Conhecimento Jurídico (UNIPAMPA) e do Projeto de Extensão LivraElas: Feminismos em debate (UNIPAMPA). Dedica-se aos estudos de epistemologia e sociologia do conhecimento, direito e literatura, direito das mulheres e direito e feminismos.
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