Por Júlia F. Lins
O que implica o ato de escrever? Por que escrevemos - o que buscamos com a escrita, qual a intenção por trás da escrita? Como escrevemos e para que(m) escrevemos?
Hans Ulrich Gumbrecht e Georg Lukács escreveram sobre a escrita. O primeiro sobre, principalmente, a intenção por trás da escrita, e da leitura: criar, ou sentir, o Stimmung da obra; se desamarrar de antigos padrões de forma de escrita, como a clássica acadêmica, para possibilitar um tipo de escrita presente, que através da prosódia e poética, catalisa uma experiência única que uma obra literária, ou artística, pode transmitir; está intimamente relacionada à performance, na medida em que se concentra nas atmosferas e ambientes, climas e estéticas, desenvolvendo vitalidade (cor, cheiro, humor, intensidade, emoção) na escrita e um sentido não-imediato à ela.
O segundo sobre, principalmente, a forma de escrita: ela deve se desenhar à verdade. Para Lukács, o ensaio crítico como forma de escrita, e como forma de arte, deve buscar, de maneira subversiva também, dizer algo sobre a vida através de símbolos, unindo a alma e a forma em uma única escrita. Porém, assim como a poesia, a crítica profunda não expressa coisas nem imagens, apesar de forma ser a realidade dos escritos críticos. A escrita emana apenas transparência, apenas algo que nenhuma imagem seria capaz de expressar plenamente, como afirma o autor.
Ambos autores discutem o impacto da escrita para a percepção do(a) leitor(a). Mas, enquanto Lukács, em A Alma e as Formas, se detém na ciência da arte como forma de atingir a verdade, Gumbrecht, em Atmosfera, Ambiência, Stimmung, se concentra na atmosfera e ambiente, que abarca a obra como parte da vida no presente, não chegando a uma verdade inclusa no texto.
Enquanto autores(as) de textos acadêmicos se ocupam a descrever metodologicamente questões da área de interesse ou atuação, autores(as) de textos literários ou ensaios são mais fluidos em sua composição, deixando que as raízes de uma hipótese deem vida a pormenores de uma problematização, às vezes negligenciada ou que não coube em uma sequência lógica de fatos e argumentos, e deixando que palavras ritmadas ou metafóricas ou não-comuns criem uma atmosfera viva, interessante ou empolgante ao texto.
Escritos como roteiros de peças teatrais, acredito, são exemplos perfeitos de textos com Stimmungen. Harry Potter and The Cursed Child (J.K. Rowling), por exemplo, une dramas da vida diária, problemas do mundo da mágica e emoções humanas em mais ou menos 30 cenas que levam ao leitor progressivamente se adequar ao universo apresentado através de pausas, exclamações, letras maiúsculas, reticências, explícitas e não explícitas intenções e expressões. E para além de textos, a música, como Gumbrecht faz analogia, também apresenta um Stimmung próprio: dos graves aos agudos (e tudo entre) de uma música clássica de Bach a uma batida eletrônica de David Guetta, o ritmo e escolha das junções de tais sonoridades criam atmosferas únicas que podem ser sentidas (interpretadas) como tristeza, desespero, leveza, agilidade ou outros.
Escrevemos, pois, para tentar encontrar a essência das coisas, ideias, imagens, da vida. Encontrar sentidos, verdadeiros. Para expressar intrigas, contradições, epifanias, esperanças, questões. Para escrevermos para além de conexões entre fatos, com a curiosidade e o conteúdo presentes, prontos para serem transformados em forma, viva. Escrevemos para nós mesmos(as), a fim de nos esclarecermos à terceiros, esperando também esclarecer os terceiros. E quanto melhor a forma, maior o conteúdo: mais profunda a transformação em quem escreve e em quem lê.
A Escrita Livre e Marcel Proust
A leitura, para Proust, parece ser um ato solitário de vantagens para a saúde intelectual: ao descrever um dia de sua infância, no qual laboriosamente tentava, e conseguia, ler um livro sem ser interrompido, ele nos expressa o quão rico esse esforço é, pois nos leva, não só à percepção detalhada do ambiente e pessoas com quem nos relacionamos, como também, e principalmente, à auto percepção.
O ato de ler parece respeitar uma ordem natural do tempo: “Olhe a casa de Zelândia, rosa e brilhante como uma concha [...]” (p. 32) – e, logo após ler esta frase, e partir para a outra, a casa não existe mais; o que existe é o próximo fato e próximo pensamento como leitor(a). Assim como o movimento da vida parece dever ser.
Isso me remete ao pensamento de Proust quanto à relação entre a leitura e a depressão: ele nos diz que a primeira serve a segunda como um tipo de catalisador que permitirá ao indivíduo depressivo conseguir atingir suas profundezas psíquicas, que de outro modo, sem um estimulo estrangeiro, não conseguiria. Por mais que eu reconheça sentido no que diz - pois também percebo a leitura como um catalisador para as mais íntimas profundezas mentais - talvez a leitura não pudesse ser comparada a um interlocutor ativo, empático às questões de quem o lê, pois, dependendo do conteúdo e intensidade da escrita, ela pode ser um catalisador ao desastre, à descontinuidade de pensamento pior do que era antes de iniciar a leitura. Talvez, em casos específicos, Proust não seja indicado, por não ter a sensibilidade de perceber isto – mas aqui falo do autor em seu descontexto.
Talvez o ato da escrita, mais que a leitura, fosse melhor indicado para a depressão: em um, os devaneios mentais são expressado para fora do individuo, vocalizados em escritas, verbalizados e portanto presentes no agora, e não em um passado abstrato; no outro, os devaneios permanecem puramente mentais, fragmentados, e se entrelaçam cada vez mais com novos devaneios derivados da leitura – até que as mãos impulsivamente fechem a capa do livro. Saudável por fazer questionar; nem tão saudável por estimular demais.
Mesmo com a eventual angústia de uma leitura existencial, também entendo a partir de Proust que a leitura é, para cada indivíduo, uma experiência: a leitura é, de fato, sentida como uma experiência por mim (principalmente as biografias, que carregam poucas metáforas e mais explícitos sentimentos quanto às tragédias e acertos da vida; mas os poemas e ficções também, que despertam, quase sempre, uma sabedoria de si da qual Proust fala). E, de fato, quando converso sobre uma biografia com alguém, é quase sempre na forma de auto reflexão.
A leitura também tem o aspecto nostálgico, de transmitir sensações passadas, e até mesmo cenários vívidos inteiros. E a escrita também. Será que Proust, ao escrever tanto sobre a leitura, mas raramente abordar os aspectos da escrita, diz, indiretamente, sobre ela? Pois a escrita e a leitura não são complementares nessas experiências nostálgicas, significativas, catalisadoras? Não necessariamente, mas potencialmente?
O rito da leitura como momento de concentração mental e movimentação perceptiva provoca inquietações que nos leva a reconsiderar o olhar que damos às coisas, relações, crenças... Porém, ao finalizar um capítulo literário, caso não fiquemos por alguns instantes em silêncio, passaremos logo a outra atividade, sem deixar que a catalisação seja conscientemente absorvida. Portanto, a leitura é um ato majoritariamente psicológico, inteiramente individual – pela perspectiva proustiana – e, nesse sentido, pouco afeta a realidade material imediata, mas afeta a relação estética que temos com as coisas.
Perante isto, por que alguém busca pegar um livro, se recolher, e lê-lo? Pessoalmente o pego quando, ou me relembro de seu mundo com saudades, ou me lembro dele com aflição. Ambos os casos são acompanhados pela vontade de preencher espaços ainda vazios (ou sempre vazios): algo que estimule meu pensamento, enriqueça a minha técnica de viver, aperfeiçoe meu saber sobre mim mesma ou outros seres – uma personagem ou uma Baleia. Quero saber mais, para poder ter mais o que falar, para, assim, ajudar – a uma causa e a mim mesma, como ser que pensa e se frustra e se alegra, que complexamente ri ou chora, ou ambos. Também como ser entediada comigo mesma, com a luminosidade da tela do computador, com a negligência humana, com a falta do que sonhar. Pela esperança de coletar, ou recriar, ressignificar, os fazeres comuns de minha vida e apimenta-los, ou adoçá-los.
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