Por Júlia Fregni Lins - Ciências Sociais UFCG
Resumo: Ao estudarmos duas importantes obras da economia politica clássica, A Democracia na América, de Tocqueville, e O Governo Representativo, de John Stuart Mill, nos deparamos com correspondências e contradições no que diz respeito a forma de governo democrático. No presente artigo analisaremos, a partir da comparação entre ambas as obras, em que aspectos o germe e desenvolvimento da democracia anglo-americana compatibilizam com as considerações da teoria do governo representativo, de Stuart Mill.
Palavras-chave: democracia; governo representativo; soberania popular
Abstract: As we study two important works on classical political economy, Democracy in America, of Tocqueville, and Representative Government, of John Stuart Mill, we come across contradictions and correspondences with respect to the form of democratic government. In the present article we will analyze, through the comparison of both works, in which aspects the origin and development of Anglo-American democracy is compatible with the considerations made in Stuart Mill’s theory of representative government.
Keywords: democracy; representative government; popular sovereignty
Introdução
Este artigo visa a analisar a descrição do processo de desenvolvimento da democracia na América, produzida por Tocqueville, em seu livro citado acima, de 1835. Tal análise será feita à luz das considerações sobre o governo representativo, de John Stuart Mill, presente em sua obra, também citada anteriormente, de 1861. Serão analisados, especificamente, os dois primeiros capítulos da obra de Tocqueville, visando apreender o caráter da origem da democracia na América, no qual entenderemos quais influências e medidas foram favoráveis a formação do governo democrático no território colonizado. Portanto, para que seja possível fazer uma análise a fim de buscar onde as considerações de Stuart Mill se encontram, ou se chocam, com processo de desenvolvimento democrático descrito por Tocqueville, serão também estudados especificamente os três primeiros capítulos da obra de Stuart Mill, visando centralizar a análise nos seguintes aspectos: até que ponto as formas de governo são uma escolha; quais os critérios de uma boa forma de governo; e, a afirmativa de que o governo ideal é o governo representativo.
Se referindo a uma comparação entre ideias, devemos considerar o contexto do francês Tocqueville, e suas intenções e objetivos na escrita de seu livro. O autor pode aparentar, em sua escrita, estar defendendo o desenvolvimento da democracia, ou sendo severamente contra ela. Contudo, como ele próprio admitiu, em uma carta enviada a um amigo, sua intenção baseava-se na curiosidade e no medo: "Eu confesso que, na América, eu vi mais que a América. Lá eu vi a própria imagem da democracia, ou suas inclinações, seu caráter, seus preconceitos, suas paixões. Queria estar a par dela, nem que fosse para saber se deveríamos ter esperança ou medo da própria."¹. Isto é, Tocqueville se preocupava com o fim do regime aristocrata, vigente em seu país, baseado no privilégio, hierarquia e desigualdade, e com o possível desenvolvimento da nova sociedade democrática, baseada na igualdade. Assim, era um antidemocrata. Devemos considerar também a influência da obra de Tocqueville nas ideias do liberalista empírico Stuart Mill - certamente quando escreveu O Governo Representativo - quanto as suas considerações sobre a democracia, já que o autor qualificou A Democracia na América como uma obra-prima.
Como consequência dessa influência, perceberemos as discórdias do pensamento de Stuart Mill em relação ao posicionamento de Tocqueville frente à descentralização do poder, advindo da democracia.
O governo é uma questão de escolha?
Argumentando que há duas maneiras diferentes de conceber o que são as instituições políticas e, assim, duas maneiras de considerar qual a melhor forma de governo, Stuart Mill afirma que, em um caso, o governo é exclusivamente uma questão de fim e de meio e que, portanto, o homem teria a escolha de fazê-lo segundo o padrão considerado melhor. Em outro caso, o governo é um produto espontâneo, um ramo da história natural, portanto não passível de escolha.
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¹ Trecho extraído do site Open Yale Courses (encontrado nas referências bibliográficas).
Portanto, vale destacar que Mill não apoiava a ideia de que o indivíduo não possuía liberdade de escolher em sob qual governo iria viver, ou que o governo fosse estabelecido sem a consideração das consequências conhecidas que decorreram das diferentes formas de governo. Assim, ele condenava, em parte, as duas possibilidades, porém dava a entender que a forma de governo de um determinado país deveria ser uma questão de escolha.
Observamos claramente que a democracia na América se baseou nas tradições inglesas, empregando seu caráter democrático já naturalizado pelos emigrantes ingleses. Desconsiderando a região Sul do país, da qual Tocqueville descreve como uma região colonizada por "gente sem recursos e sem modos" (TOCQUEVILLE, 1835, p. 39), que emigraram por necessidades econômicas, culminando na escravidão e na inserção de leis aristocráticas, os Estados da Nova Inglaterra se caracterizavam, desde o início da colonização, como regiões povoadas por indivíduos de bons costumes, e governadas por leis de ordem moral, sempre voltadas á defesa da liberdade do indivíduo. A democracia se estabeleceu nesses Estados de forma homogênea. O princípio puritano compartilhado entre os emigrantes de classe média que buscavam na América a difusão de uma ideia garantiu que fosse possível uma organização política representativa e unânime. O poder social que os costumes puritanos exerciam, foram a principal causa, e manutenção, do caráter moral-religioso das leis do governo democrático.
Portanto, mesmo considerando que a forma de governo da Nova Inglaterra teve suas raízes na história cultural dos emigrantes ingleses que lá se estabeleceram, e que as fortes convicções religiosas fizeram emergir, quase que espontaneamente, um governo representativo regido por leis religiosas, severas e punitivas, se observa que há diferenças entre esse governo, e o governo britânico, do qual os emigrantes se exilaram, ou foram exilados. O fato de irem a busca de liberdade religiosa fez com que a lógica da qual eram governados, porem da qual eram igualmente submetidos à censura, não fosse o ideal. Houveram mudanças consideráveis, relativas á legislação do governo. A soberania popular era articulada à participação política do povo: os costumes e ideais, que geriram as leis daquela sociedade, eram mais poderosos que as próprias leis; as leis eram postas em prática de acordo com a vontade geral, e nelas eles participavam diretamente. Não podemos dizer que o germe da forma de governo da América, particularmente dos Estados da Nova Inglaterra, foi somente o produto espontâneo da cultura de um povo, ou somente a organização ideal deste. Observamos aqui uma possível compatibilização das ideias de Stuart Mill e Tocqueville, considerando que a América teve sua democracia desenvolvida em parte pela permanência de ideias trazidas de outro continente, mas em parte, também, pela rejeição da lógica de governança da Inglaterra. Em outras palavras, em grande medida, por seu caráter independente de formação, pode-se dizer que o governo democrático da América foi uma questão de escolha, servindo como meio de representação da vontade geral, simpatizando, assim, com as ideias de Stuart Mill.
Os critérios de uma boa forma de governo
Ordem e Progresso são os principais critérios admitidos por Mill como elementos de um governo que reúne o maior numero de condições exigidas por tais elementos. Isto é, condições que atenda ao bem de uma sociedade. Como Progresso, entendemos, na perspectiva do autor, o exercício de aperfeiçoamento. Mas definir o que é ordem exige mais reflexão. A princípio, Ordem é permanência de um estado, o que implica a obediência do povo. Podemos dizer que é a preservação da paz pela cessão da violência privada, ou tudo aquilo que a sociedade exige de seu governo, que não estiver incluído na ideia de progresso. Em palavras finais, definimos "ordem como preservação de todo o bem que já existe, e progresso como o aumento desse bem" (MILL, 1861, p. 15).
Considerando a ideia de que não é possível uma organização política conduzir somente à ordem ou somente ao progresso, podemos analisar de maneira positiva tais aspectos em relação a constituição da democracia anglo-americana.
Mesmo contrariando sua própria posição politica, Tocqueville descreve a nova sociedade anglo-americana caracterizando-a como, de certo modo, triunfante; aquela que conquistou e organizou seus atributos sociais, políticos e econômicos com eficiência e paz; a que constitui um modelo político-social a ser adotado. Enquanto na Europa os direitos individuais estavam sendo cada vez mais ignorados e a vida politica contava cada vez menos com a participação publica, a nova América (enfatizamos novamente os Estados da Nova Inglaterra) se tornava uma sociedade de exemplo, democrática, organizada, e livre - no sentido de que "no seio dessa obscura democracia, que ainda não dera a luz nem generais, nem filósofos, nem grandes escritores, um homem podia erguer em presença de um povo livre e dar, ante as aclamações de todos, esta bela definição de liberdade." (TOCQUEVILLE, 1835, p. 50). Desde a educação pública de qualidade totalmente em prol do conhecimento religioso, ou da não ignorância (alimento do satanás), porém também a favor da liberdade e igualdade entre os indivíduos, até a legislação preocupada com ordem da moral e dos bons costumes, a nova América seguia a ordem social visando o aperfeiçoamento da sociedade como um todo, isto é, visando o bem geral. Ao analisar o corpo de leis politicas dos Estados da Nova Inglaterra, observamos, com a interação do povo nas coisas públicas, o voto livre do imposto, a responsabilidade dos agentes do poder, a liberdade individual e o julgamento por júri, que as leis, votadas pelo próprio povo, eram obedecidas naturalmente por consequência da moral puritana, e a participação política geral, essencial para o que Stuart Mill caracteriza como uma boa sociedade, era fortemente presente. No condado de Connecticut, o corpo eleitoral era composto por todos os cidadãos e, mais, todos os agentes de poder incluindo o governador eram eleitos. A permanência da ordem estava garantida pelos costumes puritanos que, em contrapartida, também levavam ao aperfeiçoamento da sociedade como um todo, pois, diante de Deus, tinham o dever de se formarem em corpo de sociedade política, trabalharem para a consumação de seus propósitos e, em virtude desse contato, promulgarem leis, atos, decretos, e instruir, conforme as necessidades, magistrados, a quem prometeriam submissão e obediência. Porém, não podemos ignorar o fato de a legislação civil e criminal desse governo se caracterizar pela desigualdade. Os únicos meios de ação contra a desobediência civil e, as vezes até religiosa (mesmo com o direito a liberdade desta ultima), eram a prisão ou a fiança; isto é, as leis favoreciam os ricos e eram voltadas contra os pobres. Tal fator não pode contribuir para o aperfeiçoamento de uma sociedade como um todo. Encontramos, aqui, um dos rastros do caráter burguês dos emigrantes ingleses nos Estados da Nova Inglaterra, e, segundo Tocqueville, não haveria algo mais aristocrático do que tal legislação. Contudo, sem o intuito de provocar uma concordância, ressaltamos que, na América, foram os pobres que fizeram a lei e reservaram a eles as maiores vantagens da sociedade. Sem considerar que tais leis, junto a sede de liberdade politica, foram heranças da moral religiosa inglesa.
Portanto, encontramos, na ordem moral religiosa e nos costumes puritanos do povoado dos Estados da Nova Inglaterra, fins de caráter utilitarista. Segundo a ética utilitarista de Mill, o principio da maior felicidade estabelece que as ações praticadas devam ser capazes de trazer a máxima felicidade para o maior numero e indivíduos possível. Observamos, assim, que a homogeneidade de ideais descrita por Tocqueville se condiz á um dos princípios mais fortes de Mill. Entretanto, temos que admitir uma discordância entre o que Stuart Mill considera essencial para um bom governo, e o que Tocqueville nos mostra na história inicial da democracia na América. Mesmo preservando os bons costumes, e transmitindo-os às leis da própria sociedade, os Estados da Nova Inglaterra não se excluem do desvio do objetivo do bem social geral, justamente por conterem em sua condição moral o aspecto burguês.
O Governo Representativo e a Soberania Popular
Ao contrário do que por muito tempo foi dito, a monarquia, argumenta Stuart Mill, não poderia ser a melhor forma de governo. Tal suposição dependeria de um bom monarca onisciente, sempre informado de todas as administrações, de todos os distritos. Dificilmente um individuo estaria disposto ou apto para tal cargo. Portanto, para o autor, entre todas as formas de governo, a melhor delas é o Governo Representativo, isto é, aquele no qual haja soberania do povo, no qual o poder supremo de controle pertence a massa reunida da comunidade. Aqui, "todo cidadão não apenas tem uma voz no exercício do poder supremo, mas também é chamado, pelo menos ocasionalmente, a tomar parte ativa no governo pelo exercício de alguma função publica." (MILL, 1861, p. 31).
Voltando-nos para a descrição da realidade dos Estados da Nova Inglaterra, de Tocqueville, observamos a subordinação do Estado à sociedade, da qual desfruta de verdadeira autoadministração, constituindo uma democracia eficiente. Mill, em seus argumentos, admitiu que uma sociedade como a descrita por Tocqueville seria capaz de improvisar um governo caso fosse deixado sem um, e de conduzir uma questão pública qualquer com um grau suficiente de inteligência, ordem e decisão. Talvez sua alusão tenha sido construída pela exata causa de que os emigrantes ingleses, ao chegarem exilados na nova América, eficientemente se organizaram e constituíram uma forma de governo justo - e moral. Para Mill, a verdadeira liberdade do povo americano se encontra aí. Contudo, para Tocqueville, "não é que povos cujo estado social é democrático desprezam naturalmente seu desejo; ao contrario, eles tem um gosto instintivo por ela. Mas a liberdade não é o objeto principal e continuo de seu desejo; o que eles amam com um amor eterno é a igualdade [...]." (TOCQUEVILLE, 1835, p.63). Vemos, assim, que os indivíduos anglo-americanos, ao preferirem a igualdade na servidão à desigualdade na liberdade, admitem que sua democracia e a vontade que a mantém, advêm não primeiramente do espírito da liberdade ou espírito da religião, mas sim da paixão legítima pela igualdade.
Porém, adverte Tocqueville, "quando todos são mais ou menos iguais, fica difícil para eles defender sua independência contra as agressões do poder" (TOCQUEVILLE, 1835, p. 64), concluindo, assim, que a felicidade dos anglo-americanos de terem escapado do poder absoluto se deu em virtude das circunstancias, luzes e, principalmente, costumes, que permitiram a eles fundar e manter a soberania do povo.
Considerações Finais
Ao fim desta análise, podemos concluir que a teoria do governo representativo, de Stuart Mill, em momentos compatibilizou com aspectos no desenvolvimento da democracia na América, descrita por Tocqueville, porém em outros momentos sua teoria deu luz aos defeitos de tal sociedade. Considerando ser este um aspecto positivo, de identificação, porém também de crítica, esta análise pôde nos elucidar sobre como uma forma de governo pode ser fundada, por um grupo de indivíduos em busca de liberdade e igualdade, em princípios básicos de moralidade e revolta, culminando em uma nova forma de organização social almejada por tal grupo. Pudemos perceber que Mill contradiz com a posição política de Tocqueville, não tão exposta explicitamente em seu livro, porém corresponde a algumas ideias relacionadas ao grau de instrução que deve ter o povo politicamente participativo. Ademais, consideramos que este artigo viabilizou uma análise comparativa de apenas alguns aspectos político-sociais da sociedade anglo-americana, instruindo-nos sobre, essencialmente, a origem da forma de governo vigente nos Estados Unidos da América.
Referências
MILL, John Stuart. O Governo Representativo. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1981.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo : Martins Fontes, 2005.
Open Yale Courses, PLSC-114: INTRODUCTION TO POLITICAL PHILOSOPHY. Disponível em: <http://oyc.yale.edu/transcript/796/plsc-114> Acesso em 20 de março de 2015.
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