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Foto do escritorCuritiba Suburbana

A mediocridade das redes cansa a beleza até de quem não tem

Por Aline Passos



Não, "cultura do cancelamento" não tem nada a ver com o julgamento moral expresso nas redes sociais sobre um homem casado que deseja outra mulher.

Cultura do cancelamento - se é que 'cultura' é um conceito plausível para descrever o fenômeno - é um comportamento coletivo localizado histórica e politicamente. Ele acontece nas redes sociais digitais e se trata da negação, da ruptura, de um pertencimento baseado na identidade produzida por algum ativismo ou postura pública em relação a determinado tema, assunto, pauta.

Não, não basta ter um comportamento moralmente reprovável para ser "cancelado". O homem que trai a mulher (ou algo do tipo), e cai na boca do povo, vai ser alvo de fofoca, de reprimenda, dizem alguns, moralista. Mas ele não será "cancelado" porque o cancelamento é uma relação identitária.

É cancelada a abolicionista penal (identidade ativista construída publicamente) que faz um boletim de ocorrência quando é vítima de um crime; é cancelado o homem feminista ou pró-feminismo que bate na companheira ou não paga pensão; é cancelada a feminista filmada fazendo comentários gordofóbicos sobre outra mulher. E por aí vai.

Para a cultura do cancelamento, é necessária uma contradição - real ou suposta pelos/as detratores/as - entre a persona pública construída sobre uma pauta e o comportamento privado. Isso é moralismo e pressupõe que idiossincrasias existem apenas nos outros? Sim, mas é um moralismo baseado no pertencimento identitário.

No caso do sujeito que trai esposa, companheira, ou seja lá o que monogamicamente defina a relação, a hipótese do cancelamento se verificaria se o cara fosse, por exemplo, um aguerrido defensor da família tradicional e esta defesa se desse não apenas na arena pública, mas precisamente se ela fosse a sua "bandeira" ou "causa" na arena pública.

E mesmo assim, há que se pensar se haveria cancelamento porque outra característica do ato de cancelar é que ele é feito por pares, não por estranhos. Quem cancela pede a "devolução da carteirinha" do/a outro/a que, segundo julga, não pode mais fazer parte do "clube".

Então, no caso do sujeito militante da família tradicional que é "descoberto" em comportamento privado desviante de seu discurso público, o cancelamento só poderia vir do seu próprio grupo de iguais. Afinal, ainda que possa ser ampliado ou propagado por pessoas "de fora", o cancelamento pressupõe a autoridade do lugar de fala. Cancelamento é o "peça para sair" gritado por quem está "dentro".

Cancelamento não é mera fofoca, indireta, repreensão moral ou moralista. Tudo isso existe desde que uma pessoa desocupada encontrou uma janela numa cidadezinha do interior; desde que se criou o primeiro programa de TV sobre celebridades; desde que a Geni levou a primeira pedrada. O cancelamento pode envolver todos esses elementos, mas não se define por eles, ou seja, o que o distingue de outros fenômenos não é nenhuma dessas coisas.

Agora, certamente, cancelamento é um fenômeno contemporâneo à possibilidade de qualquer imbecil citar um autor canônico, misturar um pouco de psicologia de boteco, e com isso, ganhar uns... biscoitos de seus... pares.




Aline passos é professora de direito penal e processo penal



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