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Tive Um Sonho Estranho

Estudos Piagetianos & Psicologia Genética e Educacional. Dr° Marco Antônio de Araújo Bueno.

Tive um sonho estranho...


É curioso como esta expressão precede quase sempre a narrativa de um sonho!


Mesmo com pacientes acostumados a sessões de análise onde se procura, depois de minuciosas explicações introdutórias, “desconstruir” essas engenhosas e intrigantes formações da alma.

Não é por falta de espírito científico também, que emprego aqui esta palavra; ela foi eleita pelo Dr. S. Freud para designar o “teatro das operações” (perdoem esta misteriosa analogia bélica...) dos fenômenos psíquicos.


Não esperem cientificidade destes meus comentários. É que proponho apenas, enveredarmos juntos pelos fascinantes meandros da cotidiana função de... Sonhar. Não queira leitor pragmático, convencer-se de que não sonha; nem, leitor romântico, confunda o sonhar com almejar ou idealizar.Como já estabeleci antes, trata-se apenas de uma função psíquica, imprescindível à saúde da alma, tal como o dormir o é para a saúde do corpo!


Retomando o emprego da palavra alma, originalmente proposta pelo pai da Psicanálise, é interessante constatar que, foi por ocasião da enlouquecida investida nazista, quando não só os judeus e homossexuais foram perseguidos, mas também as idéias “exóticas” e a obra de Freud, que estas, entrincheirando-se na Inglaterra e fugindo da fogueira, foram revestidas por um criterioso e “mentalista” manto de cientificidade, dando origem às difundidas palavras anglo-latinas “ego”, ”id” e “superego” em lugar de “eu”, ”isso” e “supereu”. É, portanto da sua e da minha alma cotidiana que nos ocupamos em desvendar. Menos, em tratar aqui com um prudente afastamento do divã.


A propósito, quando o Dr. Freud percebeu que, a julgar pela indiferença e desprezo da comunidade científica da época por seus acha – dos teóricos, estaria pregando no deserto ou falando às paredes, deslocou o eixo de sua escritura,voltando-o imediatamente em direção ao grande público, ávido desde sempre por conhecimentos dessa natureza. Fracasso de crítica (pelo menos, da academia médica) estouro de vendas, o seu “Die Traumdeutung” dobrou o novo século festivamente acolhido pelo leitor leigo,tal como aconteceria com um outro texto fundamental para a Psicanálise1. Citei o nome do primeiro em alemão em vista da duplicidade e abrangência de sentidos: ”A interpretação do sonhos” sugere tanto que os mesmos sejam passíveis de interpretação quanto que funcionem como chaves de interpretação da própria vida anímica, ou seja, da alma literalmente – “seelen (alma)”e “lebens (vida,existência).


Era esta a idéia: os sonhos podiam interpretar ou lançar luzes sobre os subterrâneos da motivação humana. Esta obra é amplamente apontada como sendo a certidão de nascimento de uma nova teoria e prática clínica que atravessou todo o século XX, ora mais encastela da nas ortodoxias excludentes das Sociedades Psicanalíticas, ora banalizada nos manuais da cultura de massa ou até despersonalizada pela Psicologia do Ego norte-americana. Entretanto, foi assim que a genialidade da obra sobreviveu ao impiedoso vaticínio, segundo o qual a teoria de Freud (1972) continha elementos relevantes e originais; porém o que tinha de original não era relevante e o que era relevante não tinha originalidade!


Quando nos deparamos com a afirmação de que o sonho cumpre uma função psíquica, via de regra, nos surpreendemos. Afinal, para que serviria sonhar com, digamos, um homem com cabeça de borracha; ou com uma cobra, além de aproveitar para fazer uma fezinha no bicho? Pois bem, Freud (1972) afirma ser o sonho “... a via régia para o inconsciente...”. Nós psicanalistas,gostamos de contar com isso. De fato, contamos; e isso movimenta o pêndulo do afloramento das significações no contexto da relação com nossos pacientes. E fora deste contexto mais específico, para que serviria esse monstro horrendo que invadiu com sua horripilante e grotesca figura o mais íntimo do meu recolhimento o meu sono!?


{{1Cf. FREUD, S. A psicopatologia da vida cotidiana, 1901.}}


Bem, para início de conversa, ”ele” não invadiu; foi, pelo contrário, convidado a, aí, se instalar e cumprir toda uma alegórica tarefa. Ele aí estaria para representar algo que me aflige,sem que o perceba com nitidez, mesmo em vigília. Não se trata de uma equivalência de símbolos, mas de uma complexa linguagem cifrada dentro da qual, no exemplo da cobra acima mencionado, eu poderia estar aflito com alguém ou alguma situação que me “cobra” isso ou aquilo.Também não se trata de alguma alucinada sopa de letrinhas;ainda que analistas ditos “lacanianos” sublinhemos que o inconsciente se estruture como (ao modo de) uma linguagem.


Para não adicionarmos alguns complicadores de natureza teórica, recorro ao discernimento poético de Borges (1976) o genial escritor argentino, quando comenta Coleridge2: ”... As imagens da vigília inspiram sentimentos, ao passo que no sonho os sentimentos inspiram as imagens (...). Se um tigre entrasse neste quarto, sentiríamos medo; se sentirmos medo no sonho, engendramos um tigre.” Ou seja, para entender ou digerir uma aflição ou um medo que, evocado por uma determinada experiência de vigília (“resto diurno” como a definiria Freud) sobrevenha em pleno sono, para continuarmos descansando pelo sono “...podemos projetar o horror sobre uma figura qualquer, que durante a vigília não é necessariamente horrorosa.” Eis aí a forma que encontrei para convencer pacientes a superar o embaraço inicial do “estranhamento” causado pelos sonhos e passar a anotá-los.


Alucinatórios, que sejam, sempre trarão à tona à consciência preciosa dinâmica inconsciente subsumida pelos nossos mecanismos psicológicos de defesa. Se não os anotamos, o Inconsciente os “apaga”. Supondo agora que se desmistificou algumas idéias errôneas a respeito do assunto, resta-nos esclarecer aqui o próprio estranhamento experimentado ao acordarmos após um sonho dito...”esquisito”.


Ocorre que, ao adormecermos, desligamos por assim dizer, a porção nobre do cérebro (no Sistema Nervoso Central) responsável pela racionalidade dos nossos atos, pela vontade (volição), pela consciência e pela tomada de decisões, entre outras atribuições. Por outro lado, como numa troca de grandes usinas de força, ativamos o {{2 Cf. Samuel Taylor Coleridge – poeta inglês – versão de 1797.}} sistema Nervoso Periférico que manterá em funcionamento os batimentos cardíacos por exemplo e toda a musculatura lisa do corpo. Entramos então em sono profundo e, na seqüência, no sono do sonho.3


É então que, do ponto de vista psicodinâmico “repassamos” acontecimentos, sensações e percepções vivencia dos no período de vigília, sucedendo que, entre estas imperceptíveis ocorrências, as que lançaram alguma questão psicologicamente significativa ao nosso registro inconsciente, receberão um “tratamento” semelhante a uma narrativa ficcional calcada numa figurabilidade especial. Costumo usar em consultório uma observação citada também por Borges (1976) e atribuída a Joseph Addison (num ensaio de 1712) segundo a qual “...a alma humana quando sonha, desligada do corpo é, há um tempo, o teatro, os atores e a platéia”. Borges acrescenta que é “...também a autora da fábula que está vendo...”


Sobre a referida figurabilidade, é necessário esclarecer que o “tratamento” dado ao material psicologicamente significativo já aludido (e para que continue “latente” e censurado pelo consciente) constitui-se de algumas operações de natureza lingüística (metáforas, ou,analogias condensadas,e metonímias,tais como tomar “a parte pelo todo”, “o objeto pela pessoa que o usa”, o “continente pelo conteúdo e outras)e, por vezes, imagéticas.


Para ilustrar esse mecanismo, menciono um desenho a mim oferecido pelo meu filho em que,a cabeça de um presumido homem asiático,aparece transpassada pela figura de uma aeronave civil ,de ponta à ponta,seguida no plano seguinte por uma alusão estilizada às torres gêmeas recém atingidas em Manhattan. No “balãozinho” a inscrição: “Saiu da cabeça dele!”. Neste caso, uma metáfora inscrita num grafismo,..”como se” o avião a que alude o desenho ter-se-ia materializado e condensado na abstração de uma idéia...a de arremeça-lo!


Se estiver claro que, para defender-se de uma emoção negativa ou ameaçadora de medo ou aflição, o nosso inconsciente transforma, edita ou deforma o material latente (e {{3 é a chamada fase REM do sono; abreviatura em inglês para o fenômeno dos movimentos rápidos dos olhos, que corresponde em média a dez ou vinte minutos de sonho.}} precioso para a análise!) até que ele possa ser resgatado pela memória consciente e experenciado pelo sonhante (pra diferir de “sonhador”) como algo estranho,então podemos afirmar que através de um bem sucedido trabalho de distorção e disfarce, o sonhante não teve seu sono interrompido e a narrativa do sonho deu certo; funcionou. Quando,aliás,não funciona, temos os a terrorizantes pesadelos - os sonhos mal elaborados, os que nos fazem despertar subitamente numa angústia horrível (proveniente de nossos censurados afetos).


Pensando assim, tecnicamente, pesadelos são sonhos que não deram certo. Mas..., se nos embrenharmos distraidamente, e mais uma vez, nas reflexões de Borges (1976): “[...] e se os pesadelos forem estritamente sobrenaturais? Digamos que fossem fendas do inferno. Dentro dos pesadelos, não estaríamos literalmente no coração do inferno? Por que não? Tudo me parece tão estranho que até isso seria possível.”



REFERÊNCIAS


BORGES, Jorge Luís. Libro del sueños. Buenos Aires: Torres Agüero, 1976.

FREUD, Sigmund. Obras completas. Trad. Luis Lopez Ballesteros de Torres. Madrid:

Editorial Biblioteca Nueva, 1972. (Titulo original: Die Traumdeutung)



Sobre o Autor


Marco Antonio de Araújo Bueno


Psicólogo clínico e psicanalista lacaniano, com especialidade em psicoterapia de família; Mestre pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); especialista-doutor em Psicologia Educacional e doutorando em Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte, também na Unicamp; trabalha com Hipnoterapia Regressiva em quadros clínicos de Depressão/Ansiedade (T.Pânico), Dependência Química e Obesidade no Instituto do Sono Campinas; Cronista e colaborador de jornais e revistas.


E-mail: araujobuenopsi@terra.com.br




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