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Foto do escritorCuritiba Suburbana

A vida amorosa dos meus amigos

Por Isloany Machado


A primeira vez que tive contato com a escrita de Fernando foi quando estava estudando sobre a Reforma Psiquiátrica e encontrei um artigo de sua autoria sobre o tema (A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos). É um artigo grande, de 35 páginas, que consegue instigar a curiosidade do leitor, fazer com que a leitura chegue ao fim. Por ter me ajudado tanto com isso, a coisa tomou um tom pessoal, como se Fernando fosse meu amigo (não vou dizer de mesa de bar e nem de samba porque sou a chata dos cafés), e decidi procurá-lo nas redes sociais. Quando ele aceitou meu pedido de amizade, lembro de ter dito: gostei muito da sua escrita no artigo tal, etc. Mal sabia eu que Fernando era um escritor de outras letras para além da acadêmica.


Um dia li uma publicação na qual falava de um paciente que relutou até as últimas para pedir a ele logo a receita de algum psicotrópico. Pensando agora, acho que me encantou a possibilidade de haver um psiquiatra que sustentasse uma escuta que não passasse pela via medicamentosa. Nordestino, pai da menina Lua, psiquiatra que escuta, virei fã. Quando soube do lançamento do livro de crônicas, lamentei por morar tão longe e não poder ir, mas comprei um exemplar mesmo assim.

"A vida amorosa dos meus amigos" é um livro de crônicas, talvez eu possa dizer que é o tipo de leitura que mais aprecio, apesar do gosto por romances daqueles que tiram o fôlego. Minha preferência por crônicas tem a ver com a leveza, com o humor. De quando me entendo por gente, depois da época dos livros infantis, na adolescência adorava a série Para gostar de ler, que reunia textos de excelentes cronistas e dos quais eu ria muito. O humor do cotidiano me agrada muito, porque me faz sentir mais leve o peso que é viver. Como Fernando diz em um dos textos deste livro, "em tempos de ódio como os de agora é fundamental falar sobre o amor”.


Acho que escrever sobre o amor nunca é fora de época, mas, se “amar é dar o que não se tem", como disse Lacan, falar/escrever de amor é também deixar exposta a falta, nossas vulnerabilidades. É disso que as histórias tratam: amores. Se colocarmos numa balança, os desencontros amorosos são muito mais numerosos dos que os encontros. Não só no livro, mas na vida. É que bons encontros são raros, e mesmo eles nos socorrem como suplência à inexistência da relação sexual. Aqui Lacan de novo para dizer que não há completude e nem complementariedade entre os seres, mas o amor, num bom encontro, faz suplência a isso. (E agora eu senti que facilmente poderia virar uma personagem dos textos de Fernando, uma lacaniana que mais fracassa do que tem sucesso nas paradas do amor).

Tenho muitos textos preferidos neste livro. Todos eles são leves, engraçados, bem-humorados, a começar pela escolha dos nomes de seus "amigos”. A gente fica pensando: “mas de onde, diabos, ele tirou esses nomes?”. Os amores têm sucesso ou fracassam na medida em que as peculiaridades de cada um vêm à tona. Talvez amar seja sobre o quanto suportamos o estranho de que o outro é feito. O leitor vai se identificando com as pequenas estranhezas, eu, por exemplo, tive um ataque quando li a seguinte frase no texto “a dúvida da madrugada”: "Ela tem o hábito de roer as unhas dos pés, acorda ouvindo samba-enredo, dança nua na janela para atiçar a garotada dos prédios vizinhos...Só coisa de doida!”. Meu ataque foi porque eu roía as unhas dos pés até certa idade (idade suficiente para morrer de vergonha em admitir isso), mas sobretudo porque Fernando nos mostra em suas crônicas que o que de mais belo há no humano são suas esquisitices, suas doidices. É justo isso que nos faz sentir tocados pelo amor, um traço qualquer de doidice e não de perfeição. Nem sempre o sucesso é garantido, como no caso do texto "por questões intestinais”, em que o amigo de Fernando conhece uma moça tão linda e, ao se sentir tão íntimo e à vontade com ela, peida em sua frente para não interrompê-la enquanto conta uma história triste. "Deu ruim". Quem nunca?

As histórias são tão reais que parecem inventadas e tão impossíveis, que poderiam ter acontecido com qualquer um de nós. Num determinado ponto do livro, já não questionamos se aquilo aconteceu ou não, aceitamos as coisas mais improváveis como sendo perfeitamente possíveis. No meio das trapalhadas, surgem frases incríveis sobre o amor, sobre a vida, daquelas que soltamos no boteco ou em boas conversas com os amigos, e depois esquecemos assim que tomamos o último gole. Um exemplo: “Assim somos nós quando mudamos. Ficamos angustiados, sem saber para onde estamos indo, mas tendo a certeza de que já não é possível retornar". Essa frase me toca de tantas formas que eu nem saberia dizer.

O humor de Fernando tem uma fineza típica de quem gosta muito das ironias: “Ela correu do trabalho até a clínica de estética para depilar-se e eu fui o responsável pelas ligações que garantiriam a comida chique para aquela noite romântica. Enfim, dentro da correria, ela passou para comprar coisas que apimentassem o clima. Incenso, flores, óleos e até um novo faqueiro de prata. Realizou uns exercícios xamânicos e entoou cânticos do fogo sagrado". Não é difícil imaginar que a história acabou em tragédia, pois quanto mais se faz sala para o amor, mais chances ele tem de não comparecer.

Sem dúvidas, o que eu mais gostei no livro tem a ver com algo bem importante apontado pelo autor: diante da diversidade humana não cabe julgamentos, a amizade tem a ver com estar ali para o outro, com suas falhas e tropeços (o que nem sempre cabe numa relação de amor romântico). Quando fala de amor, talvez Fernando esteja falando mesmo é desse amor tão imenso que é a amizade, um amor que é de doação, de disponibilidade, de leveza (quase sempre).

Em minha opinião de leitora, ao falar de amor, Fernando consegue deixar um recado fundamental e que me tocou muito que é, justamente, sobre a importância de ouvir e respeitar o outro em seus amores, sem julgamentos. Há muitas formas de amar e o sentido do amor não pode ser apreendido pela via do dicionário, pois cada um ama à sua própria maneira, a partir do que sabe sobre isso: "Tem gente que ama uma pessoa em silêncio e é feliz com outra. Não há pecado nenhum nisso. A gente ama quem pode, como pode. A gente vive com quem pode, como pode. Tem gente que ama uma pessoa em silêncio e é infeliz com outra. Tem gente que ama e nem sabe que o nome daquilo é amor. Tem gente que não ama, mas vocifera aos quatro ventos seu sentimento supremo. Tem gente que é fiel a vida inteira e não tem amor. Tem gente infiel a vida toda e o amor mora ali".  O amor é sobre o que nos falta e não sobre o que temos de sobra.

Enfim, um livro para ser lido entre um afazer e outro, nas chatices das salas de esperas da vida, nas tardes de domingo, um sopro de alegria.

Obs: Um psiquiatra com uma escuta dessas, bicho, eu tomava rivotril de gute-gute se ele receitasse, apesar do cabelo bagunçado.





Isloany Machado -


Psicóloga clínica. Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção. Autora dos livros Costurando Palavras: contos e crônicas (2012), Em defesa dos avessos humanos: crônicas psicanaliterárias (2014) e do romance Nau dos Amoucos (2017). Mãe do Adriano.



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